28.6.13

Diário de um sindicalista em dia de greve



In http://www.ionline.pt/sites/default/files/styles/625x350-imagem_interior/public/imagens/greve-geral-22.jpg
É nos dias de greve que mais tenho orgulho em ser sindicalista. A luta contra o governo que acoberta os interesses do grande capital e a aflição do patronato fazem destes dias uma recompensa ímpar. E são dias cansativos, longos, que os piquetes de greve se começam a organizar às primeiras horas do dia, ainda a noite está a meio do percurso.
Como tenho responsabilidades no sindicato, durante a noite ando com os meus camaradas dirigentes de piquete em piquete. Nos serviços públicos onde a adesão à greve é total, os piquetes servem para conviver e para maldizer a política do governo de direita do momento (que, para mal dos trabalhadores, está sempre um governo de direita em funções). Os piquetes têm mais tensão quando há fura-greves, esses traidores à causa operária, ou os ignorantes que desertam da causa que os devia acolher e fazem o jogo torpe do patronato. Os covardes que querem ir trabalhar em dia de greve deviam ser expulsos do sindicato (se não vivêssemos em permanente governo de direita, com tiques fascistas, que não tem coragem de impor a sindicalização obrigatória).
Como há sempre os traidores que impedem uma adesão de cem por cento à greve (que a adesão total devia ser decretada em forma de lei), os camaradas dos piquetes organizam-se para a intimidação. Começamos de antevéspera, com persuasivas visitas às empresas sensíveis, catequizando os trabalhadores. Aos que costumam ser relutantes, fica bem sussurrar ao ouvido ameaças que põem em causa a sua posição no serviço. Se houver podres pessoais, usamo-los sem hesitação. Se nem assim forem demovidos de entrar nas instalações quando elas deviam estar fechadas por causa da greve (outra aberração possível porque há uma direita estrutural no poder), os camaradas apinham-se à entrada.
Usamos a tática da lata de sardinhas. Ficamos tão apertados, tão juntinhos uns aos outros, que sentimos a pulsação e o arfar do camarada que está colado a nós. Para alguém entrar na empresa tem de ouvir das boas e apanhar uns escondidos sopapos. É por isso que gosto de greves. Vou para os piquetes e, com o corpo avantajado que tenho, os camaradas escolhem-me para a intimidação, física se preciso for, para convencer os trabalhadores tresmalhados a meterem marcha-atrás. Mas do que gosto de mais é de ficar próximo de uma camarada voluptuosa (que as há sempre, voluptuosidade em grau variável) e, devido à proximidade, sentir as suas carnes firmes.
Fazem-se grandes amizades nos piquetes de greve, é o que vos afianço.

27.6.13

Das virtudes da infância


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(Prolegómenos de mais uma greve geral)
Oxalá nunca deixássemos de ser crianças, os que, olhos marejados de tanta ingenuidade, não queremos perceber as dores do mundo nem as tramoias dos espertos. Os que, reféns de uma inocência pueril, recusamos passar a fronteira que nos poria a governar a coisa pública, ou a sermos atores na governação por freio a quem governa.
Se ficássemos numa perene infância, acusam os adeptos do realismo, seríamos por todo o sempre alienados das coisas que fazem o mundo. Seríamos pertences de um mundo que, todavia, não seria o mundo em que medramos. Que nos demitiríamos da cidadania que é condição inata à idade que passa, aos adultos que nos fazemos contra a vontade interior e sem nada podermos contra o tempo que tem a sua causa tirana. Envelhecemos e a infância é-nos vazada. Entramos no circo dos ardis, onde quase tudo é feito de faz de conta. Onde os adultos se ensaiam atores na plena aceção da palavra.
Perde-se a bússola do genuíno. A espontaneidade é, com o tempo que acentua as rugas no rosto, um distante oráculo que desmente a menina idade onde tudo o que era importante pertencia ao lúdico dos mais velhos. Quando damos conta da adulta idade, as dores do mundo e as perplexidades interiores açambarcam os sentidos. O acessório triunfa entre os haveres da importância. Contaminados pelo saber importado dos livros, a infância desfaz-se nas últimas cinzas. Os outrora infantes aprendem, com as pedras pontiagudas que têm de atravessar, que feitos há que não resolvem nada.
Os protestos vociferados na rua, ou em dias em que se grita o direito de não trabalhar, resolvem um nada que em si encerram. E o direito de não trabalhar e o direito de gritar são direitos ungidos com a legitimidade (para que não fiquem dúvidas). Aprende-se, nestes dias em que os que não vão trabalhar olham de soslaio para os que cometem o opróbrio de fazer o contrário, que a liberdade é um valor relativo. E aprende-se a decifrar a arte da manipulação, quando há quem acomode toda a gente na simplicidade de um binómio, como se tudo fosse reduzido a uma dicotomia a preto e branco.
Podiam, ao menos, os possuidores das verdades irrebatíveis, os que falam com tanta autoridade moral em dia de greve, aceitar que quem vai trabalhar exerce uma liberdade que é tão sua. Sem que dessa liberdade se haja de entender um patrocínio aos que, mercê da greve, são contestados.

26.6.13

Sobre a toxicidade do ego


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As noites são o epílogo? Afaste-se a ideia de que as noites são um ocaso, como se fosse preciso reavivar que a todos está fadado um ocaso. Isso é desconhecer que há os eternos. Os que deixam marca indelével nos amanheceres que virão depois. Esses, do alto das suas admiráveis pessoas, são dádivas para a humanidade. Nem que de si tenham medida maior que a providenciada pelos espelhos onde, demorados, se autocontemplam.
Tem de haver figuras maiores. Protagonistas. Eles não se podem esconder. Não lhes é dada se não a gratidão dos outros quando se inclinam diante da grandeza com que ungem a humanidade. São uma sonata melodiosa que encanta os ouvidos dos outros. Sem direito a dissidências, que as que houver ou serão frenesim da inveja ou maceram num autismo doentio. A humanidade toda devia-se curvar perante as notabilidades da espécie. Quem os pode apedrejar pelo libelo de se esconderem da humildade? Aos grandes só é permitido o reconhecimento da sua elevada estatura. Se a eles vier a altivez, é um preço normal que os demais suportam. Uma compensação pelos eméritos serviços à humanidade.
Mereciam espelhos dourados, para se fitarem em complacentes autoelogios que aprovam o fausto que os indulta. Os demais, os da estatura mortal, não podem hipotecar a aura que se agiganta com o luar que cintila sobre as suas predestinadas mentes. E ai daqueles que ousarem duvidar. A mortal condição é a expressão da sua finitude. Que não lhes seja admitido o topete de ultrajar as proezas que sobram do pretérito. O tempo que passou é a credencial dos feitos assimilados. Mal são credenciados, sobre eles se investe um manto dourado que não admite reticências.
Podiam as eminências pardas voltar ao terreiro onde todas as ideias, todas as palavras, as proezas de qualquer estirpe, voltassem a ser examinadas. Nessa altura, saber-se-ia que a oligarquia protege os seus. Um sentimento de casta que montou no dorso dos humildes que rabeiam na cauda da humildade, educados para a necessária genuflexão aos sábios. E se os sábios forem impostores, protegidos pelo sentimento de casta sem terem de provar o que valem a um júri imparcial? E se os sábios o forem porque assim se decretam uns aos outros?
Talvez, então, se provasse a toxicidade do ego aspergida por tempo tanto. E os notáveis se dissolvessem nas cinzas dos egos. Pois só os quem têm fraca raça se blindam num ego febril e fabricado.

25.6.13

Diário de um boçal sensível


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A manhã é um jugo. O despertador grita ao ouvido e há um tremor de raiva que sobe desde as entranhas. É preferível sair da cama mal a mão cai sobre o despertador para o silenciar. Já fui despedido uma vez por ter sido negligente com o despertador e a alvorada fez-se já o sol tinha entrado alto pela manhã. Despacho o pequeno-almoço com brevidade. Não quer a rapidez dizer que a primeira refeição é frugal, que o corpo não se contenta com pouco alimento. As migalhas ficam onde calha e a louça suja do pequeno-almoço empilha-se até já não haver mais louça para enganar a fome depositada pelo sono.
Do dia de trabalho não se oferece dizer nada que interesse. As horas passam a eito e, todavia, muitas vezes tenho a impressão que o tempo se arrasta no seu vagar, como se houvesse uma conspiração contra a estrutural falta de vontade para o trabalho. Não perguntem se o problema é do trabalho que tenho agora (segurança na portaria de um banco), que nos outros trabalhos que já foram meus a falta de disposição era a mesma. Não me parece que fui talhado para o trabalho. À falta de berço de ouro, e à míngua de fortuna familiar, estou resignado ao sacrifício do trabalho.
Houve tempos em que estava convencido que o fado para o conforto era casar com uma mulher de meia-idade que estivesse cercada por abastança. Frequentei os meios certos, cuidei da imagem (num investimento de que ainda hoje pago prestações), engoli preconceitos. Não chegou. Uma prometida foi ainda mais embuste do que eu. A fortuna de que falava era uma miragem. Por comiseração, continuei a visitá-la na prisão onde cumpre pena. Desfalque e chantagem sobre um velho milionário a quem sequestrou segredos fizeram a sua punição. Está azeda como nunca a conheci. Talvez sejam os amuos dos maus tempos do cárcere. De cada vez que saio da visita à prisão venho com o dorso arqueado pelas ofensas. E prometo que não volto lá outra vez. Assim como assim, um homem tem direito à sua autoestima. Custa ouvir os impropérios que ferem a autoestima. Sobretudo quando alguém nos chama boçal (mas só depois de ter chegado a casa e desempoeirado o dicionário escondido numa estante, para saber o que significa boçal).
Admito que sou boçal. Ninguém se faz como gostaria de ser. Aliás, nunca tinha reparado na minha boçalidade. Talvez fizesse falta às pessoas carregarem um espelho que refrate aquilo que são e que sem o espelho não conseguem ver. Posso ser boçal. Mas ainda me orgulho de guardar um módico de sensibilidade por quem anda em maré baixa. E lá vou, duas vezes por semana, outras semanas três, na visita de fim de tarde até à prisão para sair alquebrado com o despeito da senhora que queria enganar e acabou por me enganar.
Um colega do trabalho diz que de tanta ingenuidade tenho o céu garantido.

24.6.13

Os matadores da andropausa


In http://spc.fotolog.com/photo/60/22/106/cres/1252945052522_f.jpg
Já era dia de frete. Ao almoço ia ter a companhia de duas personagens vindas da capital do país. Era minha função enturmá-los na cidade provinciana para onde vinham trabalhar. A falta de jeito para ser cicerone nas coisas alheias não me deixa à vontade. E a falta de jeito cavalga a galope porque não fui talhado para a conversa de ocasião que tem a vastidão do vazio.
Para acinzentar o cenário, os dois personagens de que fora convocado para ser cicerone tinham bazófia a rodos. Eram só façanhas, umas atrás das outras. Talvez fizesse parte de um guião para me impressionarem. E impressionaram. Pena tenho que não tivesse sido pelos melhores motivos. Já a sobremesa se aproximava, e os involuntários convidados se haviam desembaraçado da primeira garrafa de vinho tinto, passaram para o capítulo das proezas carnais. Era uma competição onde anotavam, das catacumbas da memória, as conquistas femininas que não conseguiam resistir ao seu imenso charme. O álcool, é sabido, liberta a língua e desembaraça as miragens.
A linguagem de caserna tomou conta do final do repasto. Limitado à condição de ouvinte, atónito, pois – pode-se dizer sem exagero – não os conhecia de lado nenhum para ser invadido por tanta intimidade, ia olhando para o relógio procurando apressar o fim da refeição que começava a ser indigesta. E lá continuavam eles, no marialva autoelogio de quem não deixava fora da rede qualquer rabo de saias que andasse por perto. Tudo aquilo era um repositório de memórias. E enquanto olhavam para mim, sem que eu entendesse se queriam um aceno de admiração pelas proezas ou se pretendiam reciprocidade na narração (pouca sorte teriam, que disso tenho modesto cadastro), apeteceu perguntar se aquele rosário de memórias não era um lenitivo pelos tempos áureos que, na sua idade, já não quadravam com as possibilidades físicas.
A andropausa deve ser um aborrecimento. Os pavões descaem em pueris atitudes. E vangloriam-se boçalmente sobre feitos que só as donzelas arrebanhadas poderiam confirmar se não se trata de pura imaginação. É que os cães que mais ladram são os que menos mordem.