4.3.11

Mito urbano


 In http://orelhadoano.no.sapo.pt/janela.jpg

A simplicidade da vida urbana, moderna, é uma impostura.” Pensava nisto enquanto mordiscava os dedos dela. Ela na total indiferença do filme pasteloso que roubaram da Internet. Os lençóis, desarrumados ao fundo da cama, humedecidos pelo calor que se pusera no quarto.
Às tantas, levantou-se e foi espreitar à janela. O entardecer dominical parecia levar até à cidade uma penumbra singular. Talvez as ruas, mais desertas que em dias de semana, decantassem a luz tardia, tornando-a tíbia. A velha do quinto esquerdo passeava o cão com avantajada pelugem cinzenta. Deitou o cigarro (fumado até às fímbrias do filtro) em cima do dejecto que o cão deixara para trás enquanto esgravatava o solo com as patas traseiras. A velha, a azeda velha, não se importava com mais ninguém. Do quinto ao segundo andar chegavam os acordes de árias diversas, a voz da velha sobrepondo-se, irritantemente desafinada, à dos tenores numa mistura com os picos dos envelhecidos vinis. Admitia: não era a voz da velha que entediava; era a mania de ouvir os discos tão alto nas precoces manhãs de domingo. Já se habituara. Não podia sair até tarde, que depois sobrava um par de horas de sono.
Olhou para poente, onde o casario indiferenciado do povoado se despejava no firmamento. Os olhos esbarraram num cartaz enorme – um outdoor, como a ditadura da publicidade decretou chamar. Uma estrela do futebol emprestava figura a um champô contra a caspa. Imortalizando um sorriso que tresandava à franqueza de quem engrossou a conta bancária com graúda avença. A camisola preta, escolhida pela precisão cirúrgica dos arquitectos da publicidade, era a tela que ostentava a ausente caspa. Outra intrujice: quem acredita que a estrela, mais os milhões pornográficos que embolsa por ter jeito para dar uns pontapés numa bola, precisa do champô popularucho?
No prédio à frente, o carrão quase limousine estaciona onde calha. Na rua estreita, o trânsito só não embacia porque é domingo. O carrão demora-se. Os vidros fumados escondem o resto. Demora-se. Dois táxis, obrigados a parar pela estreiteza da rua semi-ocupada pelo carrão de gente importante, desfraldam a buzina de protesto. À terceira, o figurão que ia ao volante da quase limousine desceu os vidros eléctricos e desafivelou o dedo médio com movimento enérgico na longitudinal. Foi quando saiu pela porta do passageiro uma vampe de vestido curto que mal tapava as pernas longilíneas. Loira vaporosa com andar escangalhado pelos saltos altos, arqueada pela sobredotação de cremes faciais. Vinha amuada. O amante, sexagenário com o cabelo grisalho lambido pelo gel cimentado, apressou-se a sair do carro e agarrou-a pela cintura. Beijou-a. E ela, com ar de enfado enquanto dirigia os olhos para os andares de cima, anuiu. O ricaço segredou algo. Pelo agrado da menina, dir-se-ia promessa de anel de brilhantes.
Imerso nos pensamentos do nada, punha atenção nas mutações de cores emprestadas pelo sumiço solar. Vinda do silêncio, ela sussurrou ao ouvido: “o que estás a fazer? Traz de volta os pensamentos perdidos. Aproveita-os, que não daqui a nada estou à tua espera nos lençóis que carecem aquentamento.
De facto: a moderna, urbana forma de ser era um santuário de simplicidade. Quando o pensamento não se intimidava com as espúrias deambulações nos muitos nadas que apareciam pela frente. Nadas e, contudo, penhores da complexidade atordoante. Aos sobressaltos dos pensamentos sem volume, preferia a simplicidade dos actos. Desempoeiravam as palavras sopesadas. 

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