28.2.11

Os diferentes significados do tempo


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Até nisto somos como os antípodas do planeta. Os relógios que marcam os pessoais compassos são de uma fibra diferente. Marcam a cadência em diferentes camadas, como se a ossatura do tempo fosse branqueada por diferentes penumbras da cal. Ora num esgar, ora num mais demorado impasse, em dois relógios diferentes os ponteiros afinam-se no seu compasso alterado. A cadência já se diferenciara na pulsação de ambos. O tempo, esse, passara por eles em diferentes espasmos.
Confirma-se: o tempo significa coisas diferentes para as pessoas que se amotinam nas suas diferenças. As noites não passam pelo mesmo espaço. Os dias são tenazes que coalham a claridade num breve, invernal amplexo. Dias que parecem semanas, ou semanas que se confinam ao quarto tão pequeno que parecem habitadas por uns abreviados dias. Sobra a opressão dos sentidos que se coreografam num passo falso sob a batuta das clepsidras que volteiam os ponteiros em diferentes ritmos. Uma brevidade aqui, entendida ali como uma demora infernal. Os ritmos são rios que nasceram paralelos e logo divergem pelos lados contrários dos contrafortes da montanha por ambos sulcada.
As rotinas esbarram na espessura do tempo. Na espessura que se fabrica, como se em cada um de nós houvesse uma harmoniosa forma do tempo. A sua particular forma harmoniosa do tempo, uma medida individual. As bandeiras niveladas no horizonte, alinhadas pelo vento fresco que transporta a maresia, são um simulacro do sincronismo que, por instantes, os contagia com a impressão de se abraçarem pelo tempo. Uma miragem, apenas uma miragem. Se os olhos se chegassem ao fio do horizonte onde se depõem as bandeiras içadas ao vento, veriam que nem as cores das bandeiras são olhadas em harmonia.
Poderíamos dizer: oxalá os relógios tivessem todos a mesma impressão digital do tempo rigorosamente medido pelos cientistas? O tempo é uma medida volátil. Os relógios, abraseados na imprecisão da volubilidade do tempo, são imprestáveis. Adereços. Baluartes da estética, ora os que repousam nos pulsos, ora os que enfeitam as torres altaneiras das catedrais, ora os centenários relógios das estações de comboio. Mas adereços, destinados à sua insignificância. Os ciclos interiores de cada um de nós desmentem o matemático rigor do tempo enclausurado pelos relógios. Uma mordaça que atraiçoa o devir, que é uma cilada para o presente quando se entrega na servidão das empoeiradas recordações.
Não se confirma: não somos vítimas da tirania do tempo. O tempo é uma medida inventada por cada um. Nós é que tomamos conta do tempo, damos forma e cor através dos nossos dedos como se fôssemos os seus escultores. Mas oxalá não houvesse relógios, ou calendários, ou tarefas com data marcada, tudo déspotas implacáveis que nos cercam. São eles que emprestam os antípodas para onde escorregam os corpos em demandas tão díspares.
Só somos a negação dos instintos enquanto relógios adejarem na sua perene teimosia de anunciarem as horas e os dias e os meses e todas as medidas do tempo. As medidas que retiram lucidez aos instintos. 

25.2.11

Um brutamontes pantagruélico



Há iguarias, que pertencem ao cardápio gourmet, que custam os olhos da cara. Gente que era capaz de roubar para degustar, com notório prazer orgástico, uma trufa negra, umas ovas de caviar Beluga, um champanhe de primeiro quilate, um Porto centenário – daqueles que até as mãos tremelicam de medo só de se pousarem na empoeirada garrafa que vem agarrada a repulsivas teias de aranha.
Um dia destes experimentei um preparado que levava uns vestígios de trufa branca. Soube-me a vomitado. Concedo: tenho algumas esquisitices gastronómicas. Há sabores que não combinam com o pessoal palato. Os queijos de diversa proveniência e que competem entre si para levar a palma do que tresanda pior, por exemplo. Depois de provar a sopa fria de trufas e mais-não-sei-o-quê, destronei os queijos mal cheirosos do palanque dos sabores intragáveis. Já não me revolvem tanto o estômago os queijos parmesão, serra (este com o seu peculiar odor a sulfato de peúga) ou camembert. As pequenas lascas de trufa que repousavam no topo daquela mistela esbranquiçada que serviram antes da entrada (sem ter sido pedida – um “miminho do chefe”, fui informado) quase tiravam o apetite para o resto da refeição.
Fiquei angustiado. Tenho a mania da gastronomia, dos agridoces e outros experimentalismos pantagruélicos. Fico embeiçado diante de um programa de televisão que reinvente receitas e combine ingredientes que, dir-se-ia, serem passos em falso na coreografia gastronómica. E fiquei angustiado porque sabia que as trufas eram um dos supra-sumos de quem admira a alquimia culinária. Afinal, devo ser um brutamontes a fazer-se passar por um esboço de Pantagruel. Os puristas não perdoam a heresia. Dirão: os que não tiram proveito da degustação de umas lascas de trufa não são merecedores de comendas gastronómicas. À lapela não podem exibir as medalhas de Pantagruel. São uns esbirros da gastronomia empobrecida.
O mal é que também não milito na gastronomia tradicional. Os pratos popularizados pelo povo comezinho, a que se vulgarizou chamar “cozinha tradicional”. As morcelas causam náuseas, levam a desistir do amesendar. Tudo o que seja feito com sangue de animais subtrai-me o apetite caso esteja sentado à mesma mesa. E nem o olfacto que se vai ausentando cauciona o convívio com estas iguarias que fazem crescer água na boca ao povo comezinho.
(E como lhe cresce água na boca? Quando a travessa viaja no antebraço do empregado de mesa, sulcando os ares e deixando atrás de si o odor característico, os que amesendam nas imediações e ainda não estão servidos comem com os olhos. A saliva escorre dos olhos que cintilam de prazer, antecipando a degustação de pitéu semelhante que há-de, consiga a paciência sossegar a desaustinada gula, amarar nos pratos em espera ansiosa.)
É esquizofrénico. Não teria a franquia para ser membro da excelência do gourmet por pessoal embirração com as trufas farejadas por bácoros repugnantes entre a turfa da floresta. Mas também não seria sócio honorário de uma confraria folclórica que entroniza e deifica iguarias da gastronomia tradicional.
Talvez – na arte de Pantagruel, como em tantas outras coisas – um pária.

24.2.11

Saltamos telhados


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Para quê, as ruas? Para quê o atapetado fácil das avenidas, por onde os pés deslizam com a suavidade dos desembaraços? Oxalá as palpitações não fossem um afogueamento carnívoro, uma droga qualquer que tirocina os sentidos para a adrenalina que há em si. O corpo atira-se para um turbilhão sem fim, como se andasse por dentro de uma máquina de lavar em plena função.
Para quê as ruas se temos os telhados? Para quê a lhaneza das ruas, por onde se arrastam os mortais, se podemos aspirar à imortalidade na apneia de quem saltarinha de telhado em telhado? As telhas escorregadiças, embebidas no musgo humedecido, são o chão mortiço onde os pés encontram o equilíbrio instável. O corpo joga-se nos limiares onde o precipício espreita, sedutor. O desafio é dedilhar os telhados, um atrás do outro, ludibriar o musgo traiçoeiro e as telhas apodrecidas que estão ocas por dentro. Numa correria vertiginosa, que os dias não foram feitos para envergar a mantilha da monotonia.
Saltamos telhados como gazuas ensandecidas. No trote louco que é a melodia agreste escutada nos telhados altaneiros. Saltamos telhados como se fossem os contrafortes desembainhados por alpinistas. Teimando no cume, com momentâneos parêntesis para apreciar a cidade de um dos seus altos, ou o pretexto para os interregnos onde o corpo sacia o seu cansaço.
Lá em baixo, junto às avenidas largas e às estreitas ruas da cidade – as rastreias artérias – prossegue a ladainha costumeira. Os rostos sorumbáticos entrecruzam-se na recíproca indiferença. São rostos marejados que tracejam a irrelevância das existências banais. Uma tribo em forma de matilha. Nos instantes de contemplação, os olhos extenuados depuram a tristeza dos mortais nas suas rotineiras digressões. Oxalá soubessem encontrar num bazar qualquer as especiarias exóticas que emprestam significado à existência. Uns ignoram que esses bazares povoam os telhados desconhecidos. Outros sabem onde os encontrar. Mas não arriscam o destempero de trepar as escadas até ao telhado, numa transgressão iniciada com o cadeado deslacrado que trava a subida ao sótão e é continuada com a louca correria que escala os inclinados telhados. E depois há os tresloucados saltos no vazio, de telhado em telhado, uma provocação declinada.
Talvez pelo travo adocicado da transgressão. Ou pela rebeldia que fermenta pelas veias, como se nelas houvesse uma eterna juventude que se recusa a apagar a chama que as incendeia. Todos os dias, telhados como se fôssemos saltimbancos tresmalhados, diabretes que sopram a frívola espuma que embeleza os dias com uma estética falaz. Tudo se descompõe à nossa passagem. Somos furacões que trovejam com os pés, uma enfurecida pateada nas telhas gastas da cidade envelhecida.
Como se andasse, o corpo, por dentro de uma máquina de lavar em plena função. A certa altura, derrotado pelo cansaço. Até aos heróis que se dizem enfeitiçados pelos intempestivos actos é doado o cansaço. Ao corpo já não apetecem as piruetas dos telhados que salta. Entra em modo de centrifugação, o dínamo da máquina em repouso. Enxaguando o suor derramado num dia inteiro.
Os dias são nossos e o resto, o resto não importa.

23.2.11

O sexto mandamento: não “facebookarás”


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E portanto confirma-se: há muito clero mandante que continua atamancado nas catacumbas do tempo. Depois admiram-se que usem palavras como “bafio” quando os insurgentes atiçam a igreja católica. Ele é o chefe supremo que condena a utilização de preservativos, com a insólita ideia de que espalham a sida. Ele é a castradora moral católica quando se fala de sexualidade, como se o sexo fosse um pecado mortal. Ele é outra castração, a proibição de as mulheres poderem ser padres, ou os padres serem compelidos ao celibato que contraria os ditames da biologia. Um rol interminável.
A notícias que deixam a igreja mergulhada em ridículo continuam a bater à janela. E o pior nem é a igreja cair em ridículo; é isto alimentar um beatismo de sinal contrário, o dos beatos do anticlericalismo acirrado. Tão insuportável é a cegueira dos fanáticos das sacristias como a prosápia dos lunáticos anticlericais, que têm a mania de chamar a si uma superioridade moral que não é muito diferente da que os ratos de sacristia passeiam por aí.
Desta vez, o conselho de administração de um convento em Toledo descobriu que a freira Maria de Jesus Galán tinha um perfil no facebook. A irmã foi sumariamente despedida. Que aleivosia, uma freira que entregou o coração a deus emprenhar-se com os ventos das novas tecnologias, expondo-se às heresias que povoam as plataformas que, dizem os néscios, inovam a forma como as pessoas comunicam. É que nisto das redes sociais a hierarquia eclesiástica aplica o famoso mandamento que vale para as massagens: sabe-se como começa, nunca se sabe como acaba.
Não sei se o episódio chegou ao Vaticano. E se o Vaticano, embebido no seu arcaísmo, assinou por baixo a decisão do conselho de administração do convento de Toledo, aplaudindo por cima. Ou se o Vaticano, querendo solfejar um ar desemproado, mandou por canais codificados (para não se saber, que isto de dar o flanco encerra os seus perigos) uma reprimenda aos administradores do convento. Diriam que foram mais papistas que o papa. E que esse excesso de zelo é um tiro no pé que embacia a imagem rançosa da igreja.
Ou, porventura, os sábios que atam as pontas da doutrina católica acrescentaram um sexto mandamento: não “facebookarás” para não caíres em tentação. Mandamento de verificação obrigatória por todo o clero, desde as mais altas instâncias da hierarquia eclesiástica às noviças dos conventos. Nunca se sabe os satanás que habitam nos insondáveis interstícios das redes sociais. O que elas escondem, ou os caminhos ínvios para que podem ser atirados os ingénuos que as frequentam.
Depois de tomar conhecimento da demissão da freira Galán, tenho uma vaga desconfiança que as redes sociais são a máscara que esconde os diabos que espalham os maus caminhos por onde as almas se tresmalham. Não é por acaso que o clero, e as autoridades eclesiásticas em especial, têm canais privilegiados com a suprema entidade divina. Esta, omnisciente como consta, ter-lhes-á sussurrado a meio de um conclave: “abram os olhos, as redes sociais estão contaminadas pelos imensos demonetes que devemos combater”. No dia seguinte, a freira Galán pagou a ousadia de não ter adivinhado o sexto mandamento.

22.2.11

Liberdade condicionada


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Um dilema, dos existenciais. Um amante da liberdade – é o auto-pronunciamento, nunca desmentido por vivalma – pode cercear a liberdade dos outros? Se fizer jus aos pergaminhos que julga serem seus, o que acontece se os mais chegados entre os mais chegados fizerem uso de toda a liberdade que a coerência manda respeitar? Como reage, se tamanho arsenal de liberdade o magoar? Deixa-a proceder para não atraiçoar os princípios, magoando-se insuportavelmente? Ou recusa a dor e mete areias na liberdade alheia, atraiçoando-a e, de caminho, atraiçoando a coerência?
Palavra às interrogações dos pragmáticos: de que adianta a rigidez das ideias? As ideias que nos povoam merecem uma contemplação acrítica? E se as circunstâncias mudam e o cenário já não é o mesmo, devem as ideias ficar embebidas num frasco de formol, inertes? E se afinal os princípios forem atropelados pelo zelador à primeira prova de força, serão um embuste (os princípios; ou, o que será pior, o serem considerados dogmas)?
A meio da contenda, a desorientação instalada. Quase como se o corpo andasse à procura de azimutes no meio de um nevoeiro indecifrável. Nem a palavra certeza faz sentido quando assoma à boca. A angústia que esfacela a pele volteia-se em arabescos incendiários: comete-se a aleivosia de atraiçoar as ideias entronizadas. As ideias que se julgavam matéria inerte, os rochedos inamovíveis que porfiam, estóicos, contra os elementos em fúria. Eis o dilema sinistro: não eram precisos ventos com suor a furacão nem a mestiçagem da chuva e da lama escorrendo em catadupas para estilhaçar os penedos. Uma brisa gentia, soprada de uma coutada indiscreta, e o penedo esboroou-se num acto só. As ideias que pareciam dogmas, frágeis como papel vegetal.
Os pragmáticos, outra vez: as ideias são de plasticina. Todas. Se são imprestáveis, que sejam atiradas borda fora. Trocadas por outras. Já não sobram as dores interiores pelo fracasso dos actos que depuseram os princípios no vazio da sua impraticabilidade.
Às vezes dava jeito ser como os pragmáticos. Refazem tudo a eito, na voracidade de um instante. Como é fácil desfazerem-se de um pano de fundo, trocá-lo por outro que empresta uma cor tão diferente ao cenário por detrás. O pior é quando se levantam prantos no aliciamento do pragmatismo. As ideias que se julgavam inertes estruturais não passam de sons guturais que ecoam vagamente. Os prantos parecem desmentir os pragmáticos. Revisitam as ideias hipotecadas. Obrigam à desmultiplicação das interrogações. Essas interrogações afivelam a desorientação de tudo.
A pergunta mais importante estava por chegar: as peias que se jogam sobre a liberdade de alguém não são a patente negação dessa liberdade? Se os sinos da coerência dobrarem a rebate, outra pergunta mais atroz: quem condiciona a liberdade de outrem não cauciona o desrespeito pela sua própria liberdade? Nem é preciso invocar o princípio cristão (hélas) que nos convida a tomar o lugar do outro, do atingido pelos actos próprios, antes de os praticarmos. A singeleza do acto emparelha-se na sua gravidade: quem mete peias na liberdade do outro não merece a sua própria liberdade.

21.2.11

A raiz quadrada da impossibilidade


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Os olhos tão abertos recusam o sono. Temem que um abutre saia da toca e venha devorar o que outrora fora uma casa cheia de intenções. Ou, às duas por três, a casa entrou em ruínas, antes do tempo, sem que o tempo revele os alicerces apodrecidos. Por isso os olhos recusam o sono. E temem que um maldito abutre comece a esvoaçar com água na boca para trinchar a apodrecida carcaça. O sono adiado fragiliza a casa, torna intenso o cheiro a podre por dentro. Não tarda e os abutres fazem-se notar.
Quando se regressa às páginas dos dias vividos, levantando a poeira que nelas se deitou, exalta-se o perfume da incapacidade. É como se os dias correntes estivessem viciados, declinando perante as incapacidades que sobram de trás. Os pés tropeçam em ciladas conhecidas. E nem por serem conhecidas as ciladas se desviam do caminho – diria, néscio, convencido que o caminho deve ser maleável aos imponderáveis. Esta incapacidade talvez fosse embirração com o passado. Talvez a teimosia de o recusar, como se dele já não houvesse nada para aprender. Aos bolsos onde sobram os vestígios. Ora adocicados, quando em refluxo dos tempos voltam a ser provados. Ora amargos, quando as lições de outrora, as lições que o vetado pretérito alimenta a recusa da própria importância, parecem não contar para nada.
As nuvens densas, assustadoramente escuras, acastelam-se sob um céu tão baixo que se parece esmagar sobre a cabeça. São os dias esgotados na sua beleza, os dias que doem. Mais valia saltar esses dias no calendário, ou sobre eles passar com um longo sono que fosse a sua ilusão. Mas o sono é outra impossibilidade. Ah, como ilusão e impossibilidade parecem rimas perfeitas num poema que não devia ser dado a conhecer aos olhos cansados. O que temos quando as retrospectivas se insinuam, quando elas entram pela carne dentro, tão dolorosas, e nem o sono é um bálsamo porque pelos seus dedos chegam mais recordações que derrotam o fingimento?
Fala mais alto uma teimosia indeclinável. Ela atropela os cintilantes avisos de prudência que, como as nuvens plúmbeas, se acastelam no horizonte das memórias que magoam. Às vezes, parece ensandecimento. Ou uma terminante recusa de lucidez. São inúteis as esperas nas esquinas onde se recolhem os fragmentos das lições de antanho. A teimosia irrecusável, a que também se podia chamar optimismo no porvir, não aceita que o passado seja mestre em lições. O tempo é irrepetível – e essa é a lição maior.
A encruzilhada plangente: o corpo metido numa camisa-de-forças, entre a recusa da inércia das recordações, de onde uns olhos míopes teimariam em recolher consequências; e os olhos projectando-se num porvir que não querem adivinhar, apenas saborear enquanto os dias se repetem, um atrás do outro. A encruzilhada entre as impossibilidades sobrantes, as que a poeira das memórias regurgitam com espasmos violentos, e uma certa esperança farta de que algum dia uma possibilidade supere as ameias das vãs promessas.
Para saber que os braços poderosos da impossibilidade alguma vez hão-de soçobrar diante do altar de uma qualquer possibilidade.

18.2.11

Homem a dias (de fato e gravata)


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Um homem chega a casa moído por um dia de trabalho, ainda todo engravatado. Depara com uma colossal diarreia depositada pela cadela que no dia anterior agasalhara o estômago com dois folhados de salmão surripiados aos planos de uma refeição posterior. O homem, ainda engravatado, mete mãos à obra. Atira-se à esfregona, enche o balde de água e detergente, arruma, como pode, a mistela com papel absorvente, dá corda à geringonça humedecida limpando o chão com os farrapos azulados que lhe dão extremidade.
Só dá conta que ainda está vestido como saiu do trabalho quando já leva a função quase terminada. Não cerceia o braço. Interroga-se se não terá sido tardia a constatação do engravatamento enquanto se desenvencilha da lida doméstica. As mangas da camisa e a gravata estavam sem vestígios de sujidade. Sossegado, convenceu-se a completar a função sem mudar a vestimenta.
Desembaraçou-se da água imunda pelo cano da sanita. Tirou o casaco e arregaçou as mangas: enxaguar o balde decantava precaução para não ser borrifado com os pingos que se esvaíssem. Teimosamente, conservou a gravata. Não haveria de a molhar – sacudiu-se da perplexidade, enquanto começava a convencer-se da destreza para as lides domésticas. Era arriscada tarefa. Uma amnésia forçada varrera da lembrança os pequenos acidentes que bolçavam a desastrada veia para as labutas da casa. Viver sozinho tem os seus custos. Aprender a derrotar a inépcia para as tarefas domésticas que sobravam depois da mão mágica da empregada era o desafio. Haveria de limpar, e como deve ser, o restolho canídeo. E nos preparos em que entrara em casa. Uma prova dos nove. Para ser a sério, não se podia despojar da simbólica gravata. Como se fosse a prova de fogo de um aspirante a trapezista, o equilíbrio precário a lembrar como estava tão perto de sujar a fatiota.
Outro lembrete mental: o chão tinha sido lavado, escorregava. Não fossem os pés trocar o passo e os costados bater no chão, impunham-se os passos lentos, bem medidos, a sola dos sapatos cautelosamente arrastando-se pelo chão molhado. O forçado homem a dias metido em fato e gravata estava orgulhoso. Era resplandecente, aquele chão que encontrara imundo. Amparou-se na mesa da cozinha. Atónito, sentia aqueles gestos como a façanha do dia. Fizera tudo direito, sem percalços nem sujidade impregnada na aperaltada fatiota.
Absorto, ou talvez apenas exangue, permaneceu amparado no rebordo da mesa, aturdido por pensamentos fugazes. A certa altura, olhando para as extremidades da camisa e para a gravata sem qualquer nódoa, prometeu que haveria de testar a destreza gastronómica com a mesma fatiota. Lembrara-se de programas de televisão com afamados chefes de cozinha que não fabricavam o manjar no habitual traje alvo encimado pelo avantajado chapéu que escondia crânios inventivos. Passeavam-se na cozinha, apessoados, escuro fato e impecável gravata. Dispensavam a ajuda do avental. Às vezes, uma câmara filmava grandes planos e não se notavam sequer salpicos de gordura. Nem quando a preparação do repasto exigia frituras.
Se os chefes de cozinha conseguiam, por que não seria capaz de se atirar para o meio dos tachos sem besuntar a impecável fatiota? Assim como assim, o feito já fora conseguido na exigente função de subtrair ao chão a imundície espalhada pela indisposta cadela. Inscreveu o desafio no rol das “things to do” mentalmente armazenado.

17.2.11

O miradouro


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Um promontório escondido. Para lá chegar, por entre veredas insondáveis, o marinheiro despojou-se do seu elemento natural. Escalou serranias. Nos tímpanos repetiam-se estampidos (a desabituação à altitude). Estugou o passo. Metera na cabeça que subiria ao promontório mais alto de todos, como se fosse uma peregrinação em exaustão dos apodrecidos escantilhões interiores. Sagraria, então, o seu pessoal miradouro.
Nem a chuva que se despejava sobre a cabeça, ou os lamacentos trilhos entre arbustos rasos, ou os calhaus pontiagudos cravados nas solas das botas, incomodando os pés; nada atrapalhava a ideia enraizada. Os que lhe eram próximos reconheciam a faceta. Um teimoso sem remédio. Nasciam ideias inesperadas que pareciam abrolhar de um inóspito recanto do pensamento. Os que lhe eram próximos estavam habituados a serem sobressaltados pelo insólito que fervia nas veias do marinheiro.
Enquanto trepava os contrafortes ásperos, e o vento soprava melodias que fertilizavam divagações estéreis, os pés prosseguiam maquinalmente. Tinha que desbravar os alcantilados caminhos que se insinuavam nos montes que caíam a pique sobre a sua cabeça. Um automático pensamento: “aqui nunca penetra a luz do sol”. E outro, espontâneo, que se seguiu: “e o que interessa anotar esse lugar-comum?”. Era isso que mais o incomodava. Quando espreitava por detrás do ombro, esquadrinhando (inutilmente) os esboços de antanho, era assaltado por um interminável rosário de lugares-comuns.
Amansavam-se as abruptas inclinações das rochas atapetadas com musgo. Ao mesmo tempo que a vegetação rareava, um nevoeiro denso plantou-se diante dos olhos. Quanto mais subia, mais escura a travessia. Já não havia paisagem – ou a paisagem toda tomada pelo denso manto gris da névoa. Percebera, por entre as teimosas gotículas do nevoeiro, que as veredas alcantiladas deram lugar a um amplo planalto. Custava, a respiração. Não podia deitar mão da sabedoria dos marinheiros mais velhos, que eles jamais teriam andado por tais lugarejos. O corpo pedia descanso, mas a recalcitrante cabeça arrastava as pernas cansadas enquanto houvesse um contraforte por derruir aos seus pés. Prometeu que só parava no miradouro alojado no promontório. Só faltava um pedaço do pedregoso trilho.
Depois do nevoeiro, as cotas mais altas aferroavam um sol radioso. Já avistara o miradouro, um punhado de passos à frente. Quando a empinada subida travou o ímpeto no gradeamento que amparava a queda no precipício, o marinheiro soltou os pulmões e absorveu todo o ar que conseguiu. Fechou os olhos por uns instantes. Sentia o ar frio, o ar nitidamente frio das altitudes, a refrear o enrubescimento do rosto. Entreabriu os olhos, a luz do sol mesmo sob o firmamento a anunciar o entardecer.
Percorreu todos os cantos do horizonte, dedilhando os fusos da rosa-dos-ventos. Os músculos cansados das pernas e os pés arrimando com bolhas pediam que se sentasse na laje escura que emprestava chão ao miradouro. Aquele miradouro: a outra escotilha há tanto tempo cobiçada pelo marinheiro. Não haveria de envelhecer sem travar conhecimento com tão diferente escotilha. Os elementos jogavam-se na sua alteridade. Tinha subido tão alto, empoleirado no promontório e, todavia, não avistava as águas dos oceanos.
Pela primeira vez, achara a ausência dos mares uma tela reconfortante.

16.2.11

A escotilha


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Marinheiro de si mesmo, todas as manhãs revelava as escotilhas por onde o olhar se soerguia. Podiam os céus prometer a irreverência das tempestades, ameaçar com trovoadas medonhas. Podiam vultos assustadores acenar aos ouvidos murmúrios que queriam furtar o proveito das coisas. Ao abrir cada escotilha matinal empurrava os ventos sombrios. Tudo se aclarava quando as escotilhas irrompiam entre a poeira deitada pelo vento nocturno.
O marinheiro emprestava a valentia contra a imoderação dos elementos. Estava treinado. Fainas duradouras entre a ferocidade de pavorosas marés trataram de esbulhar o medo. Aprendera a tragar o seu próprio medo. Ensinaram-lhe a arte outros marinheiros calejados. Dizia-lhe um, o das barbas farfalhudas e grisalhas, com a dureza das palavras encardidas pelo sal dos mares: “no medo, ou matas ou morres. É bom que faças o funeral do teu medo à primeira tempestade”. O dedo em riste do veterano encaminhou o olhar do marinheiro novato para a escotilha nas proximidades. Era o dedo trémulo que olhava, enquanto o olhar cansado deitado nas rugas do velho parecia perdido no firmamento. Numa enigmática contemplação, aconselhou: “procura as escotilhas. São o teu antídoto do medo”.
A primeira tempestade parecia a restante. A noite queria entrar na luminosidade do dia. Parecia que já não havia dias. A luz clara (ou qualquer esgar de luz) em total declinação diante da enfurecida coreografia dos elementos no desalinhamento dos mares. No entardecer da bonança, sondou os relógios em redor para indagar se a tempestade tinha sido tão demorada. Durara uma noite inteira.
O medo que trouxera as pulsações para a boca do estômago subjugou a lucidez. Nessa noite, quis partir em demanda da escotilha mais próxima. Os labores do navio impediam a covardia que se insinuava à boca de cena. O rosto encharcado pela mistura da chuva impiedosa e da salgada água dos mares revoltos ocultava o medo. O marinheiro passou com distinção o tirocínio das tempestades que afocinham os navios para as profundezas dos mares. A sua pessoal escotilha foi a bravura desconhecida. A tempestade neófita tinha-o posto à prova. Sentira-se como um cão acossado numa viela estreita e sem retrocesso. À sua frente, um muro alto intimidava. Como os cães acossados, de nada valia arreganhar os dentes ao infortúnio rival. O infortúnio não se acanhava, seguro da sua superioridade.
A escotilha estava do outro lado do muro. A lucidez prometia resolução no lado escondido do muro. E por mais que uns querubins arrevesados sussurrassem ao ouvido, em perturbante sinfonia, que covarde seria se não entrasse na peleja com os mastins do infortúnio, as palavras sábias do velho marinheiro ecoavam, incessantes: “não dês importância aos mastins que atiçam a raiva. Ou ainda pereces no envenenado regaço da raiva, a cilada de ti. A escotilha está do outro lado.”
No restolho da tempestade, aquelas palavras não paravam de o assaltar. Decorara-as como um catecismo. À primeira folha de papel, organizou-as em tinta permanente. Não fez como os marinheiros dos usos, que passam os tempos livres a enfiar mensagens enigmáticas para dentro de vazias garrafas de rum. O marinheiro emoldurou as sábias palavras, deu-lhes sebo para não se gastarem com a humidade dos mares. E colou-as no reverso do relógio de bolso que um lunático avô lhe dera.

15.2.11

A ver os eléctricos


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Ali ao lado: dissertam sobre o futuro que se promete a um bacharel em relações internacionais. Os jovens, imberbes por ainda não terem ouvido falar da precariedade dos que queimam pestanas a estudar e nem com um mestrado arranjam trabalho decente, sonham alto. Serão embaixadores. Farão carreira no ministério público (um equívoco inteiro, que para a magistratura vale o exclusivo do canudo em direito). Subindo por aí fora na escala dos sonhos, um deles via-se juiz do tribunal constitucional. A ganhar, diz ele, vinte mil euros por mês com direito a motorista e outras alcavalas que o erário público paga.
Como é enternecedora a ingenuidade destes jovens que têm tanta informação à mão de semear e parece que habitam o mundo errado. Dir-se-ia, se já nada importasse: como é enternecedora esta ingenuidade. Em havendo dias em que os olhos despertam para as dores de cabeça que os outros fazem de conta não serem suas, dir-se-ia: como é arreliadora esta ingenuidade. Ou, porventura, enraizando os pés, apenas se dirá que a ingenuidade é isso mesmo, ingénua e própria da tenra idade que destapa as ilusões todas.
O mal é as expectativas que se alinhavam. Olham para as carreiras dos outros, dos que tiveram a sorte de encontrar degraus mais fáceis de escalar, e estão seguros que vão deparar com as mesmas facilidades. Ignoram que a concorrência para as sinecuras é feroz. E que conta pouco o mérito (dar-se-ia o caso de alguns daqueles jovens terem conhecimentos privilegiados?) para deitar a mão aos apetecíveis lugares, para ir subindo na escala do lamentavelmente sedutor carreirismo na função pública.
O que sobra daquele mal? Depressões incuráveis. Achaques demorados. Frustrações. Aprenderão, mal deixem as portas da universidade, que não adianta fazer planos. Eles não vão ter com os planos que congeminam. Os planos, e os mais inesperados, é que vão ao seu encontro. Quando algumas gotas de fortuna forem ungidas por uns generosos dedos que não as adiam à passagem de um desses jovens. Caso contrário, engrossam o exército dos desadaptados. Dos que tiram cursos superiores e depois se apanham em trabalhos precários. Os estudos não tiveram serventia.
Foi a ligeireza com que esboçaram, em sonhos falados, carreiras com meteórica ascensão que cativou a atenção para a conversa na mesa do lado. Oxalá fossem as coisas fáceis. Estes imberbes vão esbarrar num rosário interminável de decepções. Já ouvi alguns, furiosos com as injustiças que os vitimam, disparar artilharia pesada contra as universidades. Como se elas fossem a causa dos embustes. A maior das dores que hão-de aprender a sentir é que a tremenda injustiça que os desaproveita tem causas naturais (a demografia que se vira contra eles e a sobrelotação do mercado de trabalho).
Como é dilacerante vê-los excitados com a certeza de uma carreira que não hão-de ter se não for por um acaso que se joga contra as probabilidades. Evoca aqueles sonhos que se fazem pesadelos quando andamos estrada fora e de repente, saído do nada, um súbito precipício suga a estrada debaixo dos pés. Às ilusões tenras destes jovens chama-se, na voz afamada do povo, andar por aqui a ver passar os eléctricos. Da espuma das utopias em que se debatem as fantasias sobrarão os dolorosos despojos de um quase nada.

14.2.11

Mesuras e travessuras


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Ficamos num hotel todo pimpão. Ou vamos a um restaurante onde a gastronomia se torna conceptual – daqueles em que parece mais importante explicar a alquimia dos ingredientes do que degustar os sabores em que se compõem. Somos esbombardeados com cortesia às toneladas. Sentimo-nos tratados como imperadores. Não param os salamaleques. Perguntam se está tudo a preceito. Uma, duas, três, eu sei lá quantas vezes. Sem descaírem na simpatia.
(Deve ser a profissão mais difícil. Por causa da imperativa boa disposição nos dias de pior neura. Em pensando bem, são profissões terapêuticas. O sorriso bem composto quando é a última coisa que apetece é um exercício balsâmico. Ao menos durante a jornada de trabalho, durante aquelas horas que desfilam as cortesias para que foram treinados, a forçosa boa disposição suplanta a neura que medrou com a alvorada.)
Mandam as convenções: o cliente tem sempre razão. Não vá o cliente deixar de o ser e – o pior dos cenários – passar a palavra a outros que nunca o chegarão a ser. Os economistas chamam ao modismo “soberania do consumidor”. É a democracia directa na escala da produção. Já que paga uma nota preta pelos hotéis supimpas e restaurantes gourmet que premeiam a criatividade dos chefs de cuisine, que ao cliente seja passada a escova pelo pêlo. Sorrisos de orelha a orelha em dentes zelosamente dentífricos. Genuflexões respeitosas à entrada. Só falta levarem os clientes ao colo ao quarto do hotel (que a bagagem já subiu por mãos alheias e o carro foi estacionado por outrem).
Mordomias que nunca mais terminam. Às vezes, até parece que as mordomias são um pedido de elogio aos serviços. Quando perguntam se está tudo a preceito, manda a educação (que só gente de pergaminhos é que frequenta estes lugares reservados) que se diga que sim, que tudo passa com distinção no exame da qualidade. A cortesia vira-se do avesso. Faz lembrar aqueles doentes do narcisismo que precisam de elogios e perguntam por eles a toda a hora. Manda o cinismo desconfiar dos excessos de cortesia. Só desautorizam a desconfiança cínica os distraídos, ou os que acham que a cortesia infinita é trato de polé às suas pessoas (como se as suas pessoas fossem únicas no merecimento das mordomias).
Estes cuidados com o cliente são um oportunismo. É que os serviços faustosos têm raros defeitos. Durante as mordomias incessantes, sabem que perguntar pela satisfação do cliente é passar pelo pêlo ao contrário. Ao responder, é o cliente que elogia o prestador do serviço. As mesuras têm olho esperto. São uma simpática asfixia do cliente. Ele nem tem tempo para dizer um ai se houver um contratempo, que nem sequer há tempo para o contratempo pôr o nariz de fora. E enquanto somos tomados pela erudição gastronómica da maître ao explicar a alquimia dos ingredientes do prato que amesenda, a enxurrada de sabedoria subtrai sabor à iguaria. Quando vem a conta, sabemos que as mesuras são umas travessuras pagas a peso de ouro.
O mal é que rareia o aprazimento. Os restaurantes pimpões entretecem saudades das tascas rançosas. Mas a boçalidade de uma tasca rançosa fermenta as saudades dos tratos de polé urdidos pelas mesuras janotas. 

11.2.11

Fio da navalha


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Não açambarques a monotonia. À inveja dos malefícios, manda dizer que estás servido. Destempera os açoites do porvir rançoso que atraiçoam os sentidos. Podes julgar que te entregas num remanso qualquer, como se o cérebro enganasse os ouvidos e estes escutassem o doce ciciar das águas que descem o emagrecido caudal do ribeiro. A miragem oculta a enxurrada que se avizinha. Como se o dique rompesse e as águas lamacentas, em torrente avassaladora, pulverizassem a devastação em instantes.
Roças os dedos na navalha fria, naquela parte metálica que apetecia espetar na perna, bem fundo. Tão fundo que chegasse ao osso. Os dedos contemplativos no aço da navalha são mastins da bonomia. Os espasmos, na excitação dos instantes em que os pés assentam na majestosa fímbria do precipício, uma patologia irrecusável. Queres lá saber da normalidade. E o que é a normalidade? – interpelas os sentidos, atónito pelo ostracismo dos outros. Todos os dias olhas para o caudal e metes o corpo nu na água fria. Arremetes contra a caudalosa maré como se provasses só a ti mesmo a brava têmpera que navega pelas veias ferventes.
Às vezes, quando o fio onde os pés assentam se adelgaça, crescem as tonturas que afivelam o desequilíbrio. Envaidecido, julgas-te um trapezista circense sem audiência para julgar as proezas que cortejam o ego insano. A corda torna-se tão fina que só consegues pôr um pé de cada vez. O vento em ebulição ajuda às vertigens que são o teu nutriente. Vozes apoquentadas dizem-te, cá de baixo: “olha que cais, estás no fio da navalha”.
Desembainhas a navalha enquanto o verniz da corda se estilhaça, os entrelaçados têxteis desembrulhando-se dos seus forçados nós. Tu foges como podes da corda que se desengonça atrás de ti. As vozes apoquentadas caldeiam-se com a vertigem que não te é dada a conhecer. Como te divertes com o pavor dos rostos lá em baixo! Com a navalha, cortas pedaços de corda à tua frente, ao que se soma a destemperança que te precede. O sublime equilíbrio ensina-te a saltar, periclitante, entre os pedaços soltos. Atinges o zénite, dirias que voas como só às aves é dado voar. As tuas pernas, as asas que levam já para fora do que os olhos aterrorizados das apoquentadas vozes apreciam.
Só há milagres para quem se aprisiona a tacanhos horizontes. Os elementos são-nos dados. Só por extravagante prestidigitação conseguias rivalizar com o voo dos pássaros. Ou em sonhos, os festivos sonhos que te dedicam um sorriso amável nos cantos da boca enquanto amoleces no sono. Às vezes, é tão frágil a fronteira entre sonho e pesadelo. Convenceras-te que o sonho era o palco onde as impossibilidades eram fungíveis. A certa altura, a corda esticou até ao limiar, onde já não havia corda a escorar o voo intrujão. Os pés contracenavam com o vazio, a tremenda gravidade a puxar o corpo para baixo. Era como se houvesse um turbilhão a fazer de íman, o corpo sugado para as profundezas onde nem o fundo se alcançava.
Tanto esgotaras as impossibilidades decantadas pelo fantástico sonho, que num golpe de asa, ganhou metamorfose de pesadelo. A tua sorte foi a gravidade voraz que te acordou. Sobressaltado, submerso em grossas gotas de suor, os olhos esbarraram na mesa de cabeceira. E na navalha que repousava atrás do relógio.

10.2.11

Antes de Saint-Tropez


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A costa azul desfilava encantos publicitados. A espaços, a costa escarpada encontrava pousios onde se estendiam praias de areia pedregosa e escura. Às vezes a estrada fugia do mar, à mercê de um promontório que a engenharia não soubera domesticar. Serpenteava tortuosas curvas entre os contrafortes das montanhas que mergulhavam, abruptas, no mar. Depois do cume, atirava-se, a estrada, numa vertiginosa descida que voltava a beijar as margens do mar. À passagem das localidades, o notório luxo das moradias viradas para a estrada.
Para trás havia ficado Cannes. Para os arrivistas sociais, um deslumbramento ímpar. Um cortejo infindável de pretendentes ao estrelato, mais os acéfalos seguidores. Hotéis que transpiravam um luxo onírico. Tudo embrulhado num glamour que encanta multidões. A caminho de Saint-Tropez, numa rotunda que fazia a despedida da (para muitos) sumptuosa Cannes, o semáforo acendeu a luz vermelha. Inerte, com os pés enterrados na relva que separa os dois lados da estrada, um homem de meia idade segurava entre as mãos um cartaz encardido pelos gases vomitados pelos automóveis que por ali passavam em abundante trânsito. O cartaz gritava, em vez do silêncio do homem, “je veux travailler”.
O homem tinha o olhar detido no firmamento. Insensível aos automóveis que ora passavam apressados antes que o semáforo se arrependesse da luz verde, ora se detinham ao sinal de obrigatória paragem. Parecia hipnotizado, os olhos vidrados, humedecidos por lágrimas vãs que percorriam o desespero interior.
Não pedia esmola, como fazem os pedintes que tomam conta de uma esquina em movimentadas ruas citadinas. Não jogava com as fraquezas da consciência dos burgueses que se cruzam com os habituais mendigos que ora confessam a fome que os mirra por dentro, ora desfilam o rosário de lamentações na equação da numerosa prole que padece necessidades. Impassível, aquele homem. Metido em andrajos que não impediam uma impecável gravata que se distinguia entre as descompostas fraldas da camisa. Usava uns sapatos gastos, os cordões desapertados revelando o desleixo de quem teria desistido. Mas não estendia a mão à esmola em forma de numerário. Não mexia com as emoções dos viajantes gritando a fome que o consumia, nem atirava os entristecidos rostos da prole numerosa à sensibilidade de quem passava. Só queria que lhe dessem trabalho.
Quanto desespero leva um homem a emprestar-se ao cruzamento entre duas estradas movimentadas, esmagando nos viajantes o excruciante pedido para trabalhar? Convenci-me da dignidade do homem que nem o frio parecia deter. Ou, porventura, fosse louco. Um daqueles loucos que recusa a humilhação do assistencialismo, que declina a piedade falsamente comovente dos que depositam uma esmola na mão estendida em demanda da comiseração alheia. Aquele homem não queria nada disso. Queria que um qualquer dono de empresa estacionasse o carro na beira da estrada e fizesse uma proposta de emprego. Não queria esmola. Oferecia a força braçal em troca de sustento.
Não me encanto com as realistas narrativas das misérias sociais da lavra de escritores que puxam à lágrima enquanto insinuam doutrinação política. Mas fiquei minutos inteiros com o homem que queria trabalhar a povoar a paisagem que aparecia enquanto sulcava a estrada.

9.2.11

E se as crises políticas se resolvessem com greves de sexo?


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A Bélgica está sem governo há duzentos e quarenta dias. Continua a mover-se. Funciona. Andam angustiados, os adoradores da ordem e da harmonia institucional que rima com governo legitimamente empossado. Desconfio que esta angústia é mais prova de desespero, pois duzentos e quarenta dias sem governo não mataram a Bélgica. E logo a Bélgica, tão frágil no mosaico artificial de flamengos e valões, a Bélgica mesmo no limiar da desagregação. Eles temem que tantos dias sem governo provem que não há serventia nos governos.
Pelo meio, uma senadora belga fartou-se do impasse e da incapacidade para o entendimento de quem negoceia a formação do governo e sugeriu às consortes (e aos consortes) dessas pessoas que fizessem uma greve de sexo. Pode ser que a abstinência forçada os apoquente ao ponto de amolecerem as intransigências. Elas (e eles – os consortes) que ponham os figurões à míngua. A senadora está cientificamente convencida que, mais tarde ou mais cedo, os figurões cedem pelo cansaço. Vamos supor que isto acontecia. Começava a reescrever-se o manual da resolução das crises políticas. Nada de sexo e ponto final às crises. O mal é se o princípio pega de estaca e mete os seus tentáculos noutros domínios.
Questão prévia (e lá vamos farejar os becos da semântica): é greve de sexo ou greve ao sexo? O título da notícia mencionava “guerra de sexo”. Não é a prova dos nove. Quantas vezes as notícias adulteram o sentido original das palavras entoadas por quem dá o rosto à notícia? Era preciso ler (ou ouvir) as palavras da senadora. Não é indiferente o que apenas parece uma nuance semântica. Uma greve de sexo pressupõe danos para toda a gente envolvida, até para quem a convoca. Quem faz uma greve de sexo admite um auto-sacrifício. A greve também lhe faz mal, mas os valores mais altos que se levantam exigem a castidade forçada até que o problema esteja sanado. Quem promete uma greve ao sexo denuncia-se a si mesma(o). É como se a greve fosse um favor que lhe fazem, um descanso que as(os) põe a coberto de outros sacrifícios, os que vêm de mão dada com o acto. Uma greve ao sexo destapa a instrumentalidade do acto. No meio desta revoada semântica, que fique ao critério de cada um a escolha da expressão.
A ideia da senadora é insólita. Então não corre à boca pequena que o sexo amolece as pessoas? Tenho a impressão que se enganou no alvo. Se acha que a abstinência daquela gente que não se põe de acordo para a formação do governo é a solução, a irritação que acompanha a ausência forçada de sexo não será ajuda. Só vem agravar o problema. Então não se diz (também à boca pequena) que a irritabilidade de certas pessoas sinaliza a abstinência (voluntária ou não)? A senadora precisava de outras lentes. Para propor às consortes (e aos consortes) daquela tão importante gente que desatassem a copular furiosamente. Para deixarem de ser mal encarados e irredutíveis, amaciados pelo sexo mais frequente. Até porque a abstinência podia ter outras consequências devastadoras para a estabilidade familiar.
Azoado pela notícia, fiquei sem perceber se a senhora senadora é um animal sexual ou se é frígida.

8.2.11

O retrovisor que vê para a frente


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O sol aquecia as veias. Os olhos fechados, o rosto inclinado para o misericordioso sol, e uma revoada de imagens mentais que acendiam a perspicuidade bem funda. As imagens eram transportadas de tempos em deserção. Desfilavam sem critério, caídas aleatoriamente sobre os braços da tarde invernal que acolhia um sol tão quente que era insólito.
Fragmentos esparsos, sem fio condutor nem critério temporal. Ora uma imagem resgatada à adolescência imberbe, ora outra que fora lá atrás à remota infância, ou uma terceira que não tinha ainda ganho a espessura da poeira que se compõe com as clepsidras que esvoaçam. Entrecortadas por um aluvião de instantes que se assoberbavam no palco mental como um relampejar de flashes frenéticos. Os flashes iam e viam a uma cadência vertiginosa, enchendo as pálpebras interiores de espasmos que gritavam aos passeantes. Uma tempestade alucinante, com a ossatura do tempo a trovejar os seus protestos.
Teimavam, os olhos cerrados. Queriam aquele pesar que parecia um lícito torpor alucinogénico. Parecia ter passado uma eternidade desde que cerrara os olhos. Apenas sentia os passos quase imperceptíveis das pessoas que passavam em redor. E a brisa fresca que acidulava as melenas descompostas sobre a testa e os vértices dos olhos. Os curtos fragmentos de vivências eram convocados de diferentes paragens. Emergiam, relapsos, contra a itinerância do tempo. Diria: retrovisores que resplandeciam as suas imagens num paradoxal assomo que as vomitava na frontaria dos horizontes. Ou uma centelha furtiva desprendida da imobilidade do tempo enquistado.
Uma boa meia hora e os olhos permaneciam virados sobre as pálpebras encurraladas. Já não sabia se sonhava, imerso num sono que se confundia com a letargia ancorada na tarde repousantemente cálida. A certa altura, os múltiplos instantes de imagens que passavam em imenso débito pelo palco mental eram sedimentos de uma confusão interior. Ao início, não duvidara da têmpera dos clarões resgatados à inércia do outrora. Agora, outras hesitações o assaltavam. Preso às malhas da nostalgia, porventura incendiada pelo rubor da face inclinada diante do cálido sol invernal, entrara num torpor que não admitia a separação entre vivências e fantasias dignas do onírico.
Não sabia se caíra no sono. Era um limbo estranho, este que separava a lucidez pontuada pela voragem de pensamentos dos devaneios fermentados por sonhos que eram pálida imagem de experiências alguma vez notadas. Ora regressava a casas visitadas, ora entrara em quartos inúteis com a assombração de uma luz tão clara que feria a vista. No limiar entre recordações e sonhos mansos, pegava no retrovisor que absorvia as imagens tragadas no turbilhão do tempo gasto. Pegava no retrovisor e projectava-o para a frente. Para que as imagens transbordadas decantassem todos os minutos que tivessem branqueamento do porvir. Era como se o retrovisor fosse a lição mestra do tempo vindouro.
E por mais que o alter ego, sussurrando em surdina aos ouvidos da paralela consciência, reavivasse o lema maior (“não há tempos iterados”), por mais que se convencesse que os relâmpagos de outrora ficaram mudos nesse tempo, sem esporas que o aticem ao tempo forasteiro, não largava o retrovisor encardido. Os olhos ecoaram no estrépito de uma onda alterosa que se esmagou no cais. O retrovisor, ali à mão de semear. Estilhaçado.

7.2.11

Tempestade


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A noite perdera o seu silêncio estrutural. Só silvos do vento furioso, levas de chuva que se esmagavam contra as persianas. Elas estremeciam à mercê da tempestade. O sono desligado, ainda com a noite a meio. O corpo envolvido num agasalho (a casa estava fria) e os pés a caminho da grande janela da sala para admirar a tempestade. Uma romagem militante, esteja desocupado o tempo para a contemplação do caos servido pelas mãos da tempestade que destila a sua cólera.
O vento espelha-se nas árvores arqueadas sobre o seu dorso. Esvoaçam sem norte, dilaceradas pelas rajadas de vento que sopram de onde calha. Anda folhagem pelo ar, a folhagem em decesso que sucumbiu às unhas que o vento aferroou nas entranhas das árvores. As bátegas de chuva desenham uma trajectória perfeita, contornando as esquinas dos prédios numa simetria sublime. A relva está encharcada, as poças de água são o leito onde as abundantes gotas de chuva têm o seu remanso. Um guarda-chuva timorato é empurrado pela rua fora, perdido do seu proprietário. Alguém tardio desce a rua. Protege-se da chuva impetuosa puxando o casaco pela gola. A força do vento, que sopra de frente, trava a caminhada. Ele cambaleia, avançando a custo entre duas rajadas de vento que se congeminam.
A chuva constante tinha instantes de fúria sem freio. Caía com tanta afluência que diminuía a visibilidade, como se um denso manto turvasse o horizonte. No vidro da janela escorriam gotas de água perdidas, entrecortadas por outras que nelas se esmagavam. A aliteração era pontuada pelos salpicos visíveis quando a gota já em descanso, descendo pelo vidro, era interrompida por outra, errática, em rota de colisão. O vento, quando disparava em velocidades ciclónicas, descompunha o leito de gotas acamadas na vidraça.
A tempestade persistente não deixava retomar o sono. Ficou ali, embrulhado no agasalho mas com os pés descalços, na demorada admiração da coreografia que parecia ininteligível. O caos apoderava-se de tudo, prometendo danos. Uma placa de zinco cumpria o seu voo desaustinado, abraçando-se ao vento que a desprendera. Estirou-se num automóvel estacionado no sítio onde não devia. Uma refrega mais exaltada do vento torceu uma árvore de envergadura. Cambaleou numa derradeira hesitação, antes de se curvar, indefesa. Fora arrancada pela raiz. Já tanta era a fraqueza que a apoquentava.
Nisto, a madrugada entrava já na noite tempestuosa. Parecia combinado: a madrugada que depunha a noite acalmava a cólera da tempestade. As árvores já não arqueavam tanto, as bátegas de chuva não turvavam, com a sua desordenação, o horizonte. Sobrava o restolho de tudo: as folhas caídas, as poças de água no relvado, a água abundante que descia a rua como se esta fosse o leito que encamisava o caudal vociferante. Passaram dois carros dos bombeiros. Era o rescaldo da tempestade, adormecendo na sua letal acalmia.
Daí a uns minutos, quando ligasse o rádio para ouvir as primeira notícias trazidas pela manhã, haveria relatos dos prejuízos semeados pela tempestade. Não é que fosse insensível às perdas das pessoas vitimadas, mas o seu inofensivo egoísmo estava de barriga cheia por causa das horas de observação da tempestade. O que pode ser mortal encerra uma inaudita beleza.