30.7.10

O advogado das causas perdidas


In http://www.greatdreams.com/political/Don-Quixote-Windmill.gif
Talvez tenha lido Cervantes em pequeno. Talvez esteja povoado pelo imaginário de D. Quixote de La Mancha. Patrocina as causas improváveis, as causas perdidas antes mesmo de se ir a jogo. Admita-se a admiração: não é qualquer um que dá assim o peito às balas. Não é para qualquer um estar no meio da paisagem social como se tratasse de um oásis no meio do abúlico deserto. Mas também pode dar-se o caso de o oásis só se encontrar dentro da sua cabeça.
Escolhe a dedo as causas que se albergam no bornal do activismo e nelas mergulha de cabeça como seu causídico. É tanto o empenho que toda a paixão existencial é penhorada pela causa do momento. Passa a viver em função da causa que abraça, por mais estranha que seja, outras vezes insignificante (pelo menos aos olhos dos outros). São os moinhos que indicam o rumo a tomar, os moinhos enfileirados nas cumeadas como se fossem as tochas que dão luz ao activismo do momento. Nem que esses moinhos sejam produto da sua fértil imaginação, mas invisíveis aos olhos dos demais.
Outro nutriente de admiração: é um exemplo de empenhamento quando abraça uma causa. Mas, às vezes, o empenhamento transborda a lucidez. É quando a militância é tomada por um estado febril que obscurece o entendimento. Os olhos fervem, ruborizados, no encantamento pelos fragmentos da causa abraçada. O mal é a miopia que se instala, enxertada pelo estado febril que vem com a exacerbada defesa da dama escolhida. Enreda-se numa teia de parcialidade que só os de fora conseguem notar. Em terrível descompasso: o particular universo que se tece nos interstícios da memória é desmentido em duas penadas pelos que se atravessam no seu caminho. É quando esvoaçam, como casulos que isolam a magnificência da causa, teorias conspirativas que encostam a um canto da insignificância os que se atravessam no caminho. Sem perceber que é a ausência de argumentos que o leva a fugir à discussão. É quando a causa abraçada com tanto enlevo entra na fase descendente que a encaminha ao estatuto de perdida causa.
São os outros, descomprometidos e com o distanciamento que cauciona a lucidez, que primeiro notam o irremediável estatuto de causa perdida. Ao contrário, ele persiste, cobre a causa abraçada com uma carapaça que a torna inexpugnável aos adversários que depressa se entronizam no lugar de inimigos. As coisas que pertencem à causa em vias de estar perdida ganham a pretensão de totens. Imaculados na sua pureza, imersos numa perfeição quase divina, intocáveis como as coisas que se deificam. Ele inventa a sua própria religiosidade, ornamentada pelas pétalas da causa elevada ao altar da deificação.
Outra vez um lugar à admiração: não está à altura do comum dos mortais o insistente patrocínio de causas destinadas à campa onde jazem as irrelevâncias. O que me leva, de admiração em admiração, a outra das suas fontes: é que as causas nem são produto da sua criação intelectual. Ele abraça-as depois de serem inventadas por outrem. Não é um deus criador das causas de que é diligente zelador. Não passa de um sacerdote, um entre vários, mas talvez o que a traz ao peito com mais aplicação, todavia com uma miopia que inquieta. Já é do domínio da perplexidade quando as coisas se compõem em estado tal que só importa a causa que abraça, deixando a tudo o resto o rótulo da irrelevância. É que os totens são efémeros quando não passam de ilusões congeminadas pelo engodo da mente atraiçoada.
Quem será o Sancho Pança desta reinvenção moderna de D. Quixote?

29.7.10

Essa é que é essa


Maledicência?


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Dizem-me: “fartas-te de dizer mal nos teus textos”. Ao dizerem-me isto não o dizem mas pressinto-o no tom: “e torna-se cansativo”. Admito que haja razão no diagnóstico. Quem não tem capacidade de se fitar no espelho e admitir as pessoais incapacidades (a não ser os patologicamente narcísicos, os que têm de si mesmos uma imagem maior que o espelho)? Admito. Talvez custe admiti-lo um dia depois de ter rompido a regra e escrito um texto laudatório de algo.
Dizem-me, sem o dizerem por palavras, que tenho uma língua viperina. Só se a língua falar através das palavras que se compõem à saída do teclado martelado com o vigor que a fúria intelectual por vezes empresta aos textos. As palavras é que são viperinas. Por elas transpira uma capacidade desconstrutiva que roça a devastação. Faz lembrar aqueles cenários fantasmagóricos retratados em filmes sombrios, a película a preto e branco passando planícies a perder de fim onde apenas a poeira que se levanta no ar dá algum sinal de vida, tudo o resto mergulhado num plangente silêncio. O deserto enlaçado com a ausência de vida, ou o cenário sobrante das ruínas da espécie causadas por um qualquer autofágico cataclismo.
Os textos são como caterpillars monstruosos que arrasam tudo por onde passam. Não deixam uma pedra em pé. Apenas a poeira tóxica, como se as palavras críticas contivessem em si a cicuta que tudo ceifa. Dir-me-iam – se traduzissem por palavras o que os silêncios deixam nas entrelinhas – que essas palavras decantam o veneno sibilino de uma serpente. Neste jogo teatral de supostos diálogos, imagino-me a perguntar: “mas, ao menos, não são palavras meias-tintas, nem palavras que escondem intenções?” E desejo que a resposta seja “sim, são palavras francas”.
Digo que são as coisas dilacerantes em redor que arquitectam as palavras rudes. Que me não consigo libertar de uma metódica exigência interior que filtra o que rodeia com a malha fina da exigência que é a minha métrica de acção. Contraponho, como se houvesse necessidade de defender o que não tem defesa, que o mundo é uma enorme campânula de coisas grotescas. Para logo a seguir dar conta da traição das palavras que assim se ensaiam. A pose sobranceira que reivindica um estatuto de superioridade em relação ao resto. Talvez o cepticismo irreprimível não seja o pior dos pecadilhos que me atraiçoam. Talvez um inesperado, indesejado narcisismo que irrompe da epiderme no estertor da sobranceria em relação ao resto das coisas.
O pior de tudo é que são mais escorreitas as palavras instrumentais da crítica enfurecida. Das poucas vezes que as palavras transitam pela veia construtiva elas saem a custo, como se fosse um parto tirado a ferros. Digo, porventura a carecer de defesa própria, que há algum espaço para as palavras lisonjeiras. Só que o exterior em afocinhante mediocridade não logra que a lisonja enfeite as palavras. Dizem-me, outra vez: “e não será isso outro sinal de um narcisismo que o é sem dares conta?” Prefiro arrostar com a língua viperina decantada nas palavras carregadas de cicuta. E perguntam-me, como se me quisessem encostar à parede: “e não te molesta que alguém ensaie as mesmas palavras de desdém, as palavras implacáveis que destilas com tanta frequência?”. A resposta vem sem hesitações, no acto: “não”.
Foi aí que me convenci (ou quis convencer) que transito pelos antípodas do narcisismo. De outro modo, seria perturbante o incómodo de cada vez que houvesse as tais palavras implacáveis, fervilhando um desdém que apouca. É que se houvesse esse temor, um freio inconsciente seria mais poderoso do que as espontâneas deambulações mordazes que, dizem-me, por aqui abundam.

28.7.10

Com o diabo no corpo (ou o que a ganza faz)


In http://vishows.files.wordpress.com/2009/08/tricky.jpg
Às vezes parecia um exorcismo. Parecia que o artista, depois de andar alheado – minutos de costas para o público, como se ali não estivesse – subia das entranhas numa explosão arrebatada. O corpo trepidante desafiava a lógica: como podia haver tanta energia em corpo tão franzino? A voz aos soluços, o microfone sincopado contra o peito nu num eco seco em simulação do coração fervente em suas batidas ritmadas. E o corpo contorcia-se, uma e outra vez, a gutural voz arranhando os seus decibéis na fúria com que os microfones esvoaçavam em errância descontrolada. Não era exagero dizer que parecia possuído e a música decantava a posse que dele se apoderara. Exorcismo, pois.
Uma entrega total, em sobressalto contínuo. Total, a entrega, nos interstícios de um copo de cerveja, de “mais um charro para aviar”. Sem nunca deixar de ser uma espécie de maestro fora da convencionalidade. Marcando o ritmo, a entrada deste ou daquele instrumento quando achava que era a sua vez de jogar o protagonismo. Com um simples, ditatorial gesto de um braço, sem precisar de ordenar com a voz. A voz ora lúgubre, ora numa pulsão que parecia libertar o diabo aprisionado no corpo franzino. Às vezes, a voz entrava num harmonioso matrimónio com a deliciosa, suave voz feminina que o acompanhava.
Os sons agigantando-se, como se a subida a uma íngreme ladeira empurrasse o corpo em velocidade alucinante por ali acima. Os sons vertiginosos teciam-se pela batuta dos pulos ritmados no caleidoscópio das luzes emprestando psicadelismo aos fumos ilegais que o corpo ia sedimentando. Nada que a muito acertada gente, cultora das legalidades em riste, aprovasse. E, todavia, há doping necessário para libertar as algemas que ao início da função separam o artista do público. Dir-se-ia, ao começo, que adejava alguma desconfiança recíproca. A timidez ainda não aplacada pelo cocktail de álcool e “substâncias ilícitas” punha o artista à distância – e ele que estava à mão de semear dos espectadores, que tomaram a iniciativa de romper o gelo, saindo dos sossegados, sentados lugares, encostando-se às grades que estavam a um metro do corpo franzino, tronco nu, do artista ainda ensaiando o seu transe.
Por duas vezes desautorizou os seguranças (pondo-os à beira da apoplexia) e chamou os espectadores ao palco. Actuou com os espectadores no palco, numa festividade sagrada pelas luzes que se compunham com os sons agrestes da guitarra engolida pelo público em delírio. Tribalismo a rodos: a simbiose entre o artista e a audiência, como se a audiência deixasse de o ser, aquelas dezenas de pessoas extasiadas a personificar, nuns minutos de glória, artistas que alguns apenas ousaram sonhar. Nunca vira tamanha comunhão em palco.
Tribalismo festivo, ainda. Lia-se no folheto distribuído à entrada que as influências culturais se desdobravam num catálogo versátil (do Reino Unido à Jamaica, da França a África). A espaços, a coreografia hipnótica, intervalada pelos sons ininteligíveis entoados ao microfone, levava-nos em viagem imaginada à profundeza da selva africana. Como se fossem rituais ordenados por um curandeiro guru da tribo. E a tribo correspondia, prolongando a festividade, em comunhão com o artista já destravado pelos efeitos psicotrópicos dos estranhos cigarros que ia fumando.
Saí do concerto sem perceber por que as convenções sociais teimam em proibir estas “substâncias ilícitas”. Os adversários do hedonismo teriam saído ainda na madrugada do concerto. É que eles são tão assertivos da ordem, da lei e da grei que a castradora formatação católica preconiza, ela tão a jeito da paternal autoridade do Estado a que devemos obediência. Eles reprovariam o que era dado a ver aos seus olhos. Pacheco Pereira & companhia não teriam apreciado a função.
(Concerto de Tricky na Casa da Música, Porto, 27 de Julho de 2010)

27.7.10

A cultura dentro de uma concha de cristal


In http://zeroemcomportamento.files.wordpress.com/2009/03/joao_cesar_monteiro.jpg
Pacheco Pereira às vezes consegue pôr-me ao lado das esquerdas – irritação que não fica sem perdão. Se às vezes é de uma lucidez assombrosa, outras cai-lhe o chinelo para um conservadorismo de costumes que testa os limites da paciência. Tem acontecido, ultimamente, com a sua particular hermenêutica de propostas artísticas que, digamos, se perfilam no lado alternativo das artes. É incontestável que todos temos direito ao ridículo. E quando não sabemos decantar gostos pessoais pela cultura, caímos no risco de aparecer como o animal que ficou retratado no imaginário popular como a besta incapaz de olhar um milímetro além das palas que dirigem o olhar apenas em frente.
Há aqui duas perplexidades. Primeira, como pode gente intelectualmente tão acima da média prestar-se a um paradoxal virtuosismo da imbecilidade. É quando aparecem embebidos num arcaísmo de pensamento que os coloca ao lado dos asnos que são incapazes de olhar dois milímetros para o lado. Dói-lhes o relativismo dominante, o relativismo que associam a uma certa esquerda “bem pensante”? As elevadas faculdades intelectuais deviam chegar para emprestar versatilidade às conclusões. É que este mundo não é feito de sincréticas dicotomias. Eu posso frequentar um espectáculo alternativo, daqueles que têm sido vergastados pela chibata implacável de Pacheco Pereira, sem que isso me torne um esquerdista pouco recomendável. Como posso, filosoficamente, adoptar o relativismo sem andar de braço dado com a malta que mistura a ciência com militância no radicalismo esquerdista.
Segunda perplexidade (apenas em jeito de nota de rodapé): estes cronistas que são emblemas de uma certa “direita” envergonham outro tipo de direita. Talvez seja sintomático que Pacheco Pereira, José Manuel Fernandes e Helena Matos tenham frequentado o maoismo na juventude. Trouxeram de lá a assertividade e um certo pensamento totalitário que, o mais que conseguem, é atirar-me pontualmente para a concordância com quem jamais concordaria. Por falta de paciência para aturar imperativos categóricos e visões tacanhas (Helena Matos é, nisto, a catedrática do grupo).
O remoinho da cultura faz-se na confluência das marés contraditórias. A maré contrária é a que certifica a incontestabilidade de uma certa cultura que serve os propósitos de uma certa ideologia. Sem linguagem equívoca: há todo um lumpen cultural que gravita na extrema-esquerda. Aí se nota uma confusão entre cultura e política. Como se a primeira fosse instrumental da segunda. O que rouba a sua autonomia, diria, o seu valor genuíno.
Tenho entre os escritores favoritos alguns que andaram atrelados ao PC (Eugénio de Andrade, Jorge de Sena) e outros que, gozando nas barbas da ortodoxia comunista, sempre se disseram de esquerda e bem de esquerda (Mário de Cesariny, Alexandre O’Neill). A música que ouço é quase toda militante destas bandas. Foi uma das lições que tirei do relativismo: a abertura de horizontes, temperando a rigidez de quadros mentais que fecham o entendimento às fórmulas alternativas oferecidas pelas artes. Não tenho problema nenhum em assistir a uma peça de teatro de Brecht (sempre tão marcadas pela doutrinação ideológica), ou um concerto de Massive Attack (que mais parece terem aterrado do Fórum Social de Porto Alegre), ou encantar-me com um disco de Robert Wyatt (fiel à ortodoxia comunista). Nas artes, valorizo mais a forma do que a mensagem.
Revolve-me uma dúvida metódica, contudo, na polémica causada pela recusa da câmara do Porto em chamar Saramago a uma rua. Tenho alguma simpatia pelo argumento que defende a recusa – o homem não é apenas a sua obra, é também o carrasco das liberdades que desmerece a honraria. Mas, nesse caso, como posso esfregar Ezra Pound na cara dos comunistas?

26.7.10

Lisa Gerrard, "Sanvean (I am your shadow)"

A ditadura do método


In http://troll-urbano.weblog.com.pt/arquivo/labirinto.jpg
Os mesmos passos para o que se repete, sem ser superstição. A desarrumação que só pára de inquietar quando deixa de o ser, desarrumação. É a ordem das coisas – como se houvesse uma qualquer ordem cósmica construída dentro do cérebro, para ser obedecida. Ou o risco da desordenação das coisas ecoar vagamente um corpo aos trambolhões dentro de um quarto escuro, o quarto mantido às escuras na impossibilidade de acender a lâmpada. Metódico. E, todavia, doentio.
Só nos momentos introspectivos a consciência toma nota dos procedimentos que se sobrepõem à substância das coisas. É aí que a percepção se entretece no tear das ilusões. E regista a patologia. O muito tempo desgastado com a inutilidade dos processos, como se o alindamento da ordem se sobrepusesse à espessura das coisas. Das coisas que interessam. Tomando espaço – precioso espaço – nos corredores da mente. Que interessa que se lhe chame ditadura do método ou doença do método? Seja lá o que for, são as algemas do pensamento, um verdugo da acção.
A ilusão que os imperativos metódicos conferem à existência torna-a, a largo tempo, um logro de si mesma. É como se a seguir à encruzilhada, acertado o passo pelo caminho que se julga certo, um desvio convidasse a um atalho. Com promessas de oásis cintilantes, uma paisagem plácida, com aves coloridas e águas frescas e rumorosas. Os pés perdem-se nos caminhos aveludados, extasiado com os amontoados de musgo que são regaço aos fios de água que escorrem em sublimes cascatas. A floresta densa e perfumada convida à demora. O corpo, anestesiado pelo furor dos elementos, entretém-se a conferir ordem às coisas. Um galho partido por uma tempestade pretérita, três rochas a estorvar o leito do regato, um ninho de andorinha derrubado. A luz diurna em desmaio retoma a atenção para a essência das coisas. A essência metida em salmoura pelo devaneio dos detalhes que são exigência da ordenação metódica.
O atalho fora um alçapão onde os sentidos se cegaram. Não fora um caminho directo, nem sequer o esboço do pragmatismo dos que, esses sim, imprimem disciplina mental à acção. Mas era tudo uma tremenda ilusão. O convencimento de que ser metódico aprumado era o altar onde a disciplina mental se aninhara. Estava tudo errado. Tudo o que as exigências do método conseguiam era distrair o olhar para as coisas acessórias. Algumas vezes, escorregando para a futilidade dos processos que nem sequer antecâmara das coisas que importam conseguiam ser.
O mal é que os atalhos eram fáceis de entrar mas labirínticos à saída. Sedutores na paisagem bucólica que acompanha o caminho em sintonia com os declives, ora suaves ora inclinados. No vale frondoso, onde tudo parecia uma ode à harmonia, os olhos demoravam-se no êxtase das formas. Se havia perfeição, ela estava ali perto. E assim se afugentavam as horas na dolência do sentidos. Em torpor. Quase como se aquele lugar, de tão próximo da perfeição, fosse apenas um lugar sonhado.
O anoitecer jogava-se como um chamamento à terra. Que é como quem diz, do abandono do atalho para retomar as arcadas secas e frias que eram a moldura para os pragmáticos fragmentos. Dos fragmentos que, em uníssono, se teciam na melopeia consensual, o oximoro que fazia a síntese entre a veia prática da existência e o método que lhe dedilha o percurso. Imersos na escuridão implacável, os pés tropeçavam amiúde nas pedras escondidas entre os tufos de vegetação húmida. Demoravam-se no atalho que ocultava um precipício. Oxalá soubesse acantonar o método no seu espartilho e ele não deixaria de ser apenas uma coisa instrumental.

22.7.10

Os trabalhadores vão para o céu e os patrões para o inferno


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Uma bombástica declaração na imprensa, que apenas fitei de relance. No restolho de uma proposta de revisão constitucional do PSD que, consta, pretende eliminar a justa causa como razão de despedimento, uma luminária das esquerdas pressagiou: “agora é que os patrões vão desatar a despedir como querem”. Sempre me meteu confusão este mundo dicotómico, em que de um lado estão os bons e do outro os maus da fita. Devíamos aprender que o romance pertence aos filmes, e a realidade – mais complicada, mais crua, menos romanceada – à vida que vivemos.
Estou pouco interessado na revisão constitucional do PSD. E, menos ainda, interessado nas guerrilhas de poder perfumadas pelos “estrategas da táctica” entre os partidos Dupont & Dupont. Se estou de pé atrás em relação à proposta do PSD? Pois estou. Conhecendo o património genético deste partido, não acredito que dali saia uma revisão constitucional que desfaça os profundos anacronismos da vetusta, arqueológica Constituição. Já para não contar com o tacticismo da proposta: o PSD sabe que vai ser obrigado a negociar com o partido gémeo, o PS – logo, a convencer e a fazer cedências. Nas cedências, todas as dores de parto. As intenções podem ser louváveis. Mas esbarram na dura realidade e nos fátuos oportunismos de circunstância.
Retomo o despedimento com justa causa que o PSD quer banir da Constituição. Não vou discutir o mérito da proposta. Só quero reflectir nas indignadas reacções de gente variada das esquerdas e, acima de tudo, naquela frase sintomática – “agora é que os patrões vão desatar a despedir como querem”. Vamos admitir que a ideia vingava e os “patrões” (que, não por acaso, rimam com papões) pudessem despedir sem justa causa. Podemos concluir que os “patrões” estavam no seu sétimo céu, acetinando as relações laborais com o cutelo da pressão psicológica? Podemos adivinhar que os “patrões” – sublinho, todos – passavam a despedir quem quisessem, quando quisessem, como quisessem, com a leviandade de quem toma um café?
O que me perturba é a desonestidade intelectual das esquerdas que embarcam neste estereótipo. Os trabalhadores são os bons da fita. Os patrões, sem excepção, os terríveis vilões que oprimem e oprimem e têm, geneticamente, um fundo mau. Sinal dos tempos, esta impressão digital de desonestidade intelectual faz parte de um discurso politicamente correcto. É o direito que considera os trabalhadores a parte fraca e os “patrões” a parte forte, favorecendo os primeiros na dúvida. É a comunicação social que dramatiza a “luta dos trabalhadores”, amplificando greves e contestação social, dando palco aos sindicatos e omitindo o contraditório aos “patrões”. São os partidos que, se não incluírem a sensibilidade social na sua retórica, são logo crucificados.
Tenho uma desconfiança metódica quando me tentam impingir generalizações. Esta que faz parte da semântica das esquerdas (os trabalhadores são bonzinhos; os “patrões”, a personificação de Satanás) é o exemplo de um discurso sedutor que é, todavia, um logro. Na dicotomia, faço parte dos primeiros. Não sou empresário, nem titular de uma única acção do capital social de empresas, credenciais suficientes para não fazer parte da detestável classe dos capitalistas. E, todavia, ao longo destes anos de trabalho tenho esbarrado mais vezes em maus trabalhadores do que em maus “patrões”. Onde fica a generalização, o estereótipo do bom trabalhador e do terrível “patrão”?
Não sei se faria sentido banir os “patrões” todos, aqueles que fazem parte da odiosa “iniciativa privada”. Era garantido que o bem-estar subia a rodos. Só não percebo como a maioria do eleitorado não subscreve o oráculo muito vanguardista das extremas-esquerdas arqueológicas. Daquelas que falam em “golpe de Estado” de cada vez que alguém tenta colar a Constituição aos tempos que vivemos. 

21.7.10

A alergia dos taxistas ao cinto de segurança e a acrimónia dos bigodes


In http://bastidoressf.files.wordpress.com/2009/08/taxi-de-a-devida-comedia.jpg
Por estes dias fiz meia dúzia de viagens de táxi – modalidade que já não usava há muito. Tomei conta, em todos o táxis que apanhei, que os motoristas se esqueciam de enfiar o cinto de segurança. Ter-me-á escapado algum costume entre a classe que os desobriga de obedecer à lei e à pedagogia que vem desde os bancos da escola, patrocinada pela zelosa prevenção rodoviária, que ensina a apertar o cinto de segurança logo que entramos num automóvel?
Os motoristas de táxi preferem a largueza. São fautores de uma corporativa rixa contra o cinto de segurança. Ou então foi apenas fruto da coincidência que no punhado de viagens de táxi quem me conduziu se tenha esquecido de meter o cinto. Pode ser que haja explicação para esta demissão da lei e omissão da segurança. Aqui a veia anarquista põe-se em banho-maria. É das poucas vezes em que os costados anárquicos admitem obrigação cunhada por lei. É pela segurança que a tolero. Há dias, alguém me dizia – aqui, para minha surpresa, mais libertária do que o libertário – que enfaixar o cinto de segurança devia ficar ao critério dos passageiros e de quem se põe ao volante. Só quem nunca assistiu a documentários que mostram imagens de crash tests de protótipos equipados com manequins inanimados, quando o veículo se despedaça contra uma parede e o boneco sai disparado, ou quando o boneco se transforma num amontoado de plástico esponjoso, pode alvitrar que o cinto de segurança devia ficar ao critério de cada condutor, de cada passageiro.
Dizia lá atrás, pode ser que haja explicação para os taxistas serem contumazes no uso do cinto de segurança. Uma: como a caracterização pouco simpática dos taxistas integra o imaginário popular, na traição vulgarizada pelos estereótipos, talvez a explicação esteja na ideia de que são catedráticos de todos os saberes. Aqui a pessoal experiência com taxistas não joga a favor do estereótipo. Só tenho apanhado tipos taciturnos e calados – tão calados e, porventura, taciturnos como o rosto fechado que espreitam pelo canto do olho quando este faz pontaria para o retrovisor. Leio relatos de experiências traumatizantes, gente transportada por taxistas boçais que nem têm a noção de como as ideias que transitam pelas palavras que jorram com agressividade os expõem ao ridículo de si mesmos. Não tive tamanho azar. Contudo, a confirmar-se a ideia feita que retrata os taxistas num invólucro desagradável, estamos na senda do esclarecimento para a ausência corporativa de cinto de segurança. A assertividade das “ideias” dos taxistas convence-os que os acidentes só acontecem aos outros que andam nas ruas. São uma espécie de oráculos de si mesmos. Neles bóia um auto-anjo protector.
Outra tentativa de dar explicação ao fenómeno: com a excepção de um motorista brasileiro (que, todavia, já tinha aprendido a desusar o cinto de segurança), os restantes que calharam em sorte coincidiam noutro traço de uma certa idiossincrasia geracional – o bigode plantado por cima do lábio superior. O que vem a seguir não sei explicar, é um preconceito que assalta os medos interiores. Um farfalhudo bigode, bilhete postal da portugalidade varonil de antanho, ligo-o a alguma agnosia. Posso estar com a alçada do erro de perspectiva ao alto, mas se atarmos as pontas todas (taxistas, bigodes, ignorância e alergia ao cinto de segurança) o rastilho da pólvora fica identificado.
É tudo isto. Ou então digam-me que há uma lei que acena a excepção aos taxistas. Ou que estes aproveitam um buraco da lei e andam por aí, ufanos, a jogar à sorte com a roleta russa dos acidentes de viação.

20.7.10

A “noiva do mundial” – excurso sobre a imbecilidade masculina



In http://www.gilroydispatch.com/content/img/f230653/WomenInBiz.jpg
Vamos lá ver se é desta que escrevo peça que ponha as feministas em sentida ovação. Não direi que é aspiração de vida, mas não anda longe.
Quem não foi esmagado (literalmente) pelas saliências mamárias de uma jovem paraguaia que ficou conhecida pelo fervor patriótico com que vibrava nos jogos da sua equipa no mundial de futebol? Quem não ficou embevecido com os dotes mamários, aquele pormenor do telemóvel libidinosamente repousando no regaço formado pela curvatura em forma de vale desenhado pela protuberância dos seios tão diligentemente metidos num soutien dois números abaixo do recomendado? Só quem não tenha acompanhado, não digo os jogos, mas as notícias sobre o campeonato do mundo de futebol. Aliás, a certa altura, a bola ficou muda diante da enxurrada de fotografias e imagens vivas daqueles seios mastodônticos. Aquelas mamas canibalizaram a bola.
A bola deixou de ser jogada na África do Sul, mas a rapariga continua na mó de cima. Já dei de caras com notícias de televisões de vários países latino-americanos que apanharam o avião até Assunção e meteram no GPS a morada da lúbrica moçoila. Desunham-se, os órgãos de comunicação social, por uma première da moça como ela veio ao mundo. Entretanto, foi-me dado a apreciar que a intrigantemente cunhada “noiva do mundial” (ainda estou para perceber a lógica da alcunha) é daquelas meninas que só de abrir a boca passeia um vasto oceano de frivolidade. Numa das entrevistas, um repórter peruano, nos píncaros da excitação, perseguia a moçoila pela casa familiar. As origens humildes não explicam a boçalidade da menina.
(Fecho agora o parêntesis que abri no parágrafo lá atrás, para tentar encontrar um feixe de luz para o enigma – o chamar-se-lhe “noiva do mundial”. Em que lugar do mundo uma noiva tem aspecto ordinário? Para os que prestem tributo aos bons costumes, às tradições conservadoras das boas famílias e ao resto, é uma ofensa cunhar o epíteto “noiva” a uma rapariga que mais parece uma vulgar – mas indubitavelmente sobredotada – “rapariga de programa”.)
Ora, não quero parecer bota-de-elástico. Nem ir para o refrigério por onde se acalma em autoflagelações sintomáticas gente temente aos mandamentos da santa igreja. Mas as imensas solicitações da imprensa que transformaram a rapariga em celebridade inusitada têm algo de apalermado. Faz lembrar os animais em cio que perdem o sentido dos ponteiros da bússola porque lhes chega ao olfacto o odor incomparável da fêmea lasciva que convida à cópula. Ou a adolescência, ainda na inexperiência da função, e as parvas figuras que fazíamos atrás de um rabo de saia. Ou homenzarrões que já começaram a cheirar os primeiros pós de andropausa e se acham capazes das maiores façanhas, talvez das façanhas que nem em jovens foram seu timbre, e com jeitosas raparigas de preferência com idade para serem suas filhas (ou até netas, que não desdenham).
Lá vem o “liberalão” pôr o seu amoedo. Nisto, como em tudo, em havendo um mercado não estranhemos até o insólito. A muita baba expelida por varões famélicos é a procura. Haja curvas e mulherio disposto a alugar o corpo (a oferta). Talvez esteja errado – e “forçado” aos deveres da monogamia, mais se inclina o erro – mas aprendi a apreciar mulheres com cérebro preenchido. A vista não desdenha uma mulher curvilínea a passear-se diante dos olhos. Daí a imaginar que me perdia nos lençóis com uma monumental mulher desprovida de miolos, vai a distância para uma libido sem freio e apalermada. Lá vem o aplauso das feministas: a coisificação da mulher é lamentável.
Só cá entre nós – e curto e grosso: um jantar com a “noiva do mundial” tirava-me o tesão.
(Em Santarém)

19.7.10

O jantar em Santarém começou assim



Ou seja, muito mal. Era a sina de um jantar medíocre.

Aos meus amigos que fazem parte da numerosa corte que endeusa o Mourinho


Mourinho pediu auxílio a bruxos quenianos para triunfar no Real”. E agora, também acreditamos em bruxos? 

Corninhos ao sol


In http://www.musica.iol.pt/multimedia/oratvi/multimedia/imagem/id/13141227/400
Um melómano (mas não no sentido clássico da palavra) passa por numerosos sacrifícios se aterra num dos festivais de Verão. Pode ser da idade que arqueia o dorso, já pouco paciente para os desvarios adolescentes, para as inconsequências etílicas, para os empurrões da gente que fura e fura para compensar o atraso e chegar à frente no palco.
Já não ia a um festival de Verão há seis anos. Admito: já me apetecia voltar a experimentar um festival destes, ainda que fosse forte a desconfiança de revisitar sensações passadas, sensações desagradáveis. O cartaz era convidativo. Meti os pés ao caminho. Convencido que tudo depende da mentalização dos dias anteriores. Impõe-se o chamado “espírito festivaleiro” – que é como quem diz, deitar coisas desagradáveis para trás das costas. Senão, nem a música se aprecia.
Há sinais identitários dos festivais de Verão que ultrapassam a compreensão. Não vou opinar sobre as bebedeiras descomunais que jovenzinhos e já não tão jovens carregam às costas pelo recinto. Imagino, no dia seguinte, a perguntarem-lhes o que ouviram na noite anterior. E a resposta, estremunhada pela ressaca mal curtida: “não sei”. Ele há formas mais baratas de apanhar a carraspana. Há um sinal repetido à exaustão que temperou uma certa perplexidade: os jovenzinhos vão para os concertos e, durante o espectáculo, fartam-se de esvoaçar os dedos das duas mãos em forma de corninhos.
Ora, ou eu desconheço um significado oculto e, porventura, modernaço dos corninhos ostentados pelos dedos da juventude, ou fico sem entender por que se dão ao trabalho de infestar os ouvidos com uma música de que não gostam. Serão os novos estóicos? A perturbação de significados adensa-se depois de uma observação mais cuidada. A malta que ensaiava uma estranha coreografia em que os corninhos são ingrediente que não pode faltar, dançava em compasso com a música. Alguns deles, em transe, possuídos pelo deus da cerveja patrocinadora do evento. Ou – entendo agora – possuídos pelo demónio, daí a coreografia que encena o gesto que personifica o Satanás. Noutros, aparentemente sóbrios, uma música mais conhecida subia-lhes a excitação através dos movimentos mais enérgicos dos corninhos em destacada pose nas mãos estendidas ao alto.
Concluí, então, que se cometeu uma injustiça com o enorme Manuel Pinho, esse incompreendido ministro da economia que foi empurrado para a porta de demissão quando, dentro da casa da democracia e farto de provocações, dirigiu uns corninhos a um deputado da extrema-esquerda caviar. Ainda olhei em redor à procura do Pinho, esse inventor do “Allgarve”, o ministro que tentou captar investimentos chineses acenando com os salários miseráveis que por cá se praticam. Mas consta que o homem é mais dado ao ambiente selecto do jet set, desdobrando-se em aparições nas revistas cor-de-rosa.
A linguagem reinventa-se, como sabemos. É um sinal dos tempos que recusam a inércia. Nas suas múltiplas formas, a linguagem também se expressa pelos sinais que fazemos. Porventura acabámos de reinventar, com a incalculável ajuda das gerações pós-imberbes, a linguagem simbólica que se sedimenta nos sinais exteriorizados. É como na Bulgária, onde acenar com a cabeça de cima para baixo é o contrário do que estamos habituados (em vez de sim, significa não). Os corninhos paradoxalmente assisados vertidos pelos dedos bamboleantes não são ofensa nenhuma. A crer pelo êxtase da malta que energicamente os coreografava durante os concertos, são sinal de coisa boa.
Um dia destes, se fizermos corninhos a um conhecido (ou até a um desconhecido), do lado de lá esboçar-se-á um largo sorriso que enche o ego de contentamento. Que melhor cumprimento nos podem fazer?

16.7.10

Pedra no sapato


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A forma inorgânica da pedra no rim. Admito que esta doa muito mais. É um corpo estranho que navega por dentro dos canais biliares, cortando-os com uma dor dilacerante. As pedras que trazemos no sapato são outro tipo de cólica. Podem ser pedrinhas pequenas que saltam do caminho, à passagem dos desastrados pés, e se alojam entre as peúgas e a palmilha do sapato. Ou pedras que se incrustam nas reentrâncias da sola dos sapatos, incomodando o andar e o ouvido com aquele som granítico a limar o chão que os sapatos calcam.
Também temos as metafóricas pedras no sapato. As imagens, as palavras, as implausíveis ideias, certos actos, tudo a encharcar o cérebro de poluição mental. Ou simplesmente a irritante voz de uma irritante personagem numa estação de rádio. Ou só a fotografia que exala a pesporrência desta personagem, ou aquele cabotino figurão. Três exemplos que vêm da actualidade recente: Portas queria uma espécie de “governo de salvação nacional”; a guerrinha de alecrim e manjerona entre os partidos Dupont & Dupont (os parceiros do bloco central); alguns economistas que anunciam o eclipse dos salários como pacote de salvação nacional.
Primeiro acto: Portas tirou um coelho da cartola. Convidou o esgotado primeiro-ministro a abandonar o cargo, e pediu ao PS para indicar outro para chefe de um novo governo que seria uma enorme coligação entre o PS, o PSD e o CDS. Sabemos que o panorama é sombrio. Que, se não nos pomos a pau, ainda vamos ser a Grécia que se segue. Não sei se foi o temor do apocalipse que levou Portas a esta espantosa proposta. O que me parece é que Portas perdeu as qualidades de analista político dos tempos em que era director do Independente. Parece um Cavaco, em versão mais rebelde. Só faltava mais um a dar para o peditório do “largo consenso” cinzelado por imperativos patrióticos. Continuo a acreditar que as soluções se encontram na comparação de propostas rivais. Tentar meter rios diferentes à força no mesmo caudal dá mau resultado. Era o que mais faltava uma versão requentada da união nacional.
Segundo acto: já com a bússola toda desafinada, a malta do PS e do governo anda em total desatino. Agora lembraram-se (aposto que por inspiração do ideólogo de serviço, o ministro da defesa que resvala para o papel de ministro da propaganda) de colar o PSD ora ao “neoliberalismo” ora ao “ultraliberalismo” – conforme os dias e os humores. Faz lembrar as baratas tontas acossadas por humanos vingativos, tontas quando os humanos as tentam aniquilar. A fuga errante é a sina do desespero de quem tenta sobreviver. Às vezes, vão-se meter na boca do lobo. As medidas de austeridade que o governo foi forçado a aplicar não são o receituário do tal “neoliberalismo” que denunciam no PSD? O que mais me custa, como simpatizante do “ultraliberalismo”, é ver alguém a colar um partido que é adorador da intervenção do Estado (o PSD) ao “ultraliberalismo”. A malta do PS que esteja sossegada. Nem assim me vão empurrar para o voto no PSD.
Terceiro acto: muitos economistas, cá dentro e de renome internacional, sentenciaram: esta terra só tem salvação se houver coragem para cortar salários. O corte varia com as cabeças que propõem a ideia: 10%, 20%, até 30%. Alguns dos que sugerem a medida radical não ambicionam a sinecura de ministro das finanças. Outros que já tiveram o cargo também anunciam que só assim sairemos do lodaçal. Estes é que me causam espécie. Quando por lá andaram, só aplicaram as medidas de meias-tintas que não comprometessem a agenda política (a reeleição) do partido que lá os pôs. Agora que sabem que não voltarão a ter o gabinete mais importante no ministério, enchem-se de coragem para ditar as medidas que, no seu íntimo, sabem que não iriam aplicar se se desse a improbabilidade de voltarem a ser ministro das finanças.
Faz-me lembrar aqueles valentões que dizem “agarrem-me, senão eu bato-lhe”.

14.7.10

Choradeira


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Ainda dizem que a vida de professor universitário é um sossego. Quem o diz não sonha os incómodos em que esbarramos. Agora que vamos na época de exames é quando se soltam as lamúrias todas. Sobretudo dos que se põem a si mesmos com as calças na mão e, com o punhal cortante a bafejar a carótida, sentem o arfar da aflição a sussurrar ao ouvido.
É a choradeira costumeira. Entregam o exame e rogam pela piedade do professor no acto da correcção. “Veja lá, só me falta esta cadeira para acabar o curso”, atiram para cima de mim. Ou variantes da melúria que vão dar sempre ao mesmo. Isto, sinceramente, incomoda-me. Já me convenci que o desconforto não tem ligação com o coração empedernido – que esse é outro achaque que não se mistura com o dilacerante apelo à comiseração com alunos aflitos.
O pior nem é a coacção psicológica que os alunos exercem (quero-me convencer que em alguns casos nem dão conta do que fazem; noutros, a coacção psicológica aparece bem vincada). O pior é a choradeira conduzir à falta de rigor, caso o pranto sem lágrimas levasse a lugar algum. Se esse fosse o caso, levava em consideração o pedido de piedade deste ou daquele aluno. Fechava os olhos aos erros e às omissões, desatando a creditar valores atrás de valores sem haver merecimento para tal. Ao fazê-lo, cometia uma tremenda injustiça pela mão das diferentes bitolas usadas. Uma, mais generosa, para os que tivessem estendido a mão em jeito de peditório pessoal. A outra, sem favores, aos que por timidez ou vergonha tivessem entregue o exame em silêncio. O pior de todos os males, contudo, seria a indulgência com a mediocridade.
Dir-me-ão que não posso fazer extrapolações do comportamento. Que ele deve ser isolado num contexto muito particular – as necessidades que desfilam ao longo do percurso académico dos estudantes, às vezes a ansiedade que os desassossega. Eu vou mais longe. Extrapolo. Este é um comportamento que vem de fora para dentro, da sociedade que somos todos para o microcosmos da universidade. A universidade reproduz um leque de comportamentos observados no exterior. Onde quero chegar? A um dos expoentes da mediocridade que nos consome: com duas palmadinhas nas costas, tudo se resolve. Convencidos que, de uma maneira ou de outra, tudo se consegue, os mais relapsos (que, por efeito de contágio, tendem a ser cada vez mais numerosos) não tiram de si o melhor dos esforços. Sabem que uma “palavrinha” no momento certo comove o interlocutor, demove-o caso esteja renitente em arrefecer o rigor. Leva o interlocutor à piedade que é o miasma da vida grupal.
É sintomático que sejam os mais velhos a cometer a humilhação de rogar pela comiseração avaliativa do professor. São os mais velhos que já têm tarimba da vida grupal, que estão corrompidos pelos vícios enraizados. Alguns desses vícios, e dos maiores, são a fasquia nivelada por baixo, a invocação do menor denominador comum, a poupança de esforços que não cativa a excelência, o “amiguismo” que suplanta os méritos, o que depois leva à amalgama dos méritos que se perdem entre a desesperança, a prostituição mental que é pedinchar a piedade alheia para se alcançarem os objectivos. São os mais velhos que mais insistem neste desagradável costume da choradeira. Os mais novos, ainda não embebidos nos vícios da vida grupal, manifestam-se imberbes e não se lamuriam. Ficam para trás? Não. Triunfam em dignidade.
Crestado por dezassete anos de função, a maior parte das vezes reajo com indiferença à choradeira. Quando estou mal disposto, ao escutar a comovida súplica dou o seguinte troco: “não faça triste figura”. 

13.7.10

Catalunha


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(Provocação ao cuidado da embaixada espanhola.)
Agora que são os maiores da bola e andam de papo inchado – por fim confirma-se a prosápia: são os melhores do mundo, até na bola – desenganem-se: a Espanha é uma artificialidade. Convém que não distorçam factos: sete em onze dos que entraram em campo para ganhar a taça eram da Catalunha. Da Catalunha... Só por miopia considerável, ou por oportunismo tribal, é que cantam glória. Dois terços da taça vai para a Catalunha. A bem dizer, este feito é uma espinha cravada na garganta da Espanha imperial.
Acompanho alguns órgãos de comunicação social espanhóis. É impressionante a cegueira nacionalista quando consagram as vitórias de desportistas seus. Ou, mais ainda, quando não têm fair play para reconhecer a justeza da vitória dos atletas que derrotaram os espanhóis. Alguns, mais por dentro do fenómeno desportivo nacional e da imprensa da especialidade, dirão: não é nada que não conheçamos por cá. Só que há uma diferença que não é detalhe. Quando se folheiam jornais espanhóis, nota-se um arrebatamento irracional, um culto exacerbado da nacionalidade. Não é por acaso que, ao fazermos comparações entre idiossincrasias nacionais, espanhóis e franceses rivalizam no apogeu do chauvinismo.
Esta é a minha teoria: só um país que o seja à custa de uma argamassa forjada é que eleva os sinais de pertença ao máximo expoente. Quando a pertença é genuína e não se fragmenta em diversas nacionalidades (asfixiadas ao jugo centralista), não se puxam os galões a um nacionalismo anacrónico. Que esse nacionalismo seja massajado à exaustão quando há competições desportivas nacionais que, erradamente, põem as “nações” em compita, é outro sinal de como anda torto o mundo. É que não são as “nações” que se digladiam, como se fosse uma versão revista das espúrias guerras que foram teatro das relações ancestrais entre povos. Por detrás desse atavismo encontra-se a essência das competições: o esforço de atletas, um esforço individual – ou o somatório de esforços individuais, quando a competição é colectiva.
A sede da Espanha em gritar a pulmões abertos a vitória, agora que estão por quatro anos no topo dos que jogam à bola, terá explicação na profunda crise para que foi atirada pelo incompetente socialista governo de Zapatero. Ou num fenómeno que vai além dessa conjuntura, um fenómeno estrutural: a ansiedade de quem vê o frágil cimento espanhol acossado pelo mosaico de nacionalidades reprimidas. Uma das nacionalidades mais fortes é a catalã. Se eu fosse espanhol, e se fosse importante o feito da equipa da bola para a auto-estima associada à pertença (o que, conhecendo-me como conheço, duvido que acontecesse), só se tapasse o sol com a peneira é que não ficaria angustiado com a glória dos atletas.  É que dois terços daquela equipa vinha da Catalunha. De uma equipa que faz gala em afirmar o desejo de independência da Catalunha.
Esta ibéria está amarrada a uma confluência de destinos contraditórios. Há os que aspiram à unidade dos Estados (não das nações) ibéricos. E há os que empurram para níveis inferiores a organização política ideal, pulverizando a Espanha nas suas diversas nacionalidades. Em vez de unidade, desagregação. Os actuais Estados decompostos nas suas várias nações. Para os que se interessam pelo fenómeno da bola, fica a seguinte especulação: até assim a Catalunha seria triunfal.
Em jeito de remate, não percebo por que andam tão contentes os espanhóis. Tomaram como sua uma glória que muito se deve a catalães que não se revêem na Hispânia. Esta vitória é um hino à autodeterminação catalã. Não é uma cura para a depressão em que Zapatero e os seus meteram a Espanha. É mais lenha para a fogueira onde essa depressão arde. Há feitos que vêm por mal.

12.7.10

Mão Morta, "Gumes 5 - O Rei Mimado"

Mão Morta e mostarda de Dijon


In http://menuespecial.com/blog/wp-content/uploads/mostarda_reine_anciene.JPG
Gastronomicamente falando, há experiências que não são para qualquer um. Iguarias exóticas para os aventureiros. Mas nem é preciso entrar no santuário das esquisitices pantagruélicas. A gastronomia tradicional roça a perplexidade quando a ementa é decantada por um forasteiro. Agora vou testar os limites um pouco mais à frente: algumas dessas iguarias que pertencem ao imaginário colectivo também não são para qualquer indígena. Quem as experimenta pela primeira vez esbarra em sabores invulgares. Os que se ficam pelos sabores tragados na primeira garfada não voltam a visitar o petisco. Há quem seja perseverante. Ouvem dizer que o repasto é digno dos deuses. A primeira reacção do palato não o confirma. Sobra a teimosia, andar às voltas com os sabores. E eis que a insistência compensa: de repente, os sabores que seriam esquisitos são um novelo de paladares divinais. Mas só ao alcance de uns quantos. Os que souberam persistir e romper a barreira que escondia os paladares desconhecidos.
É esta imagem que passa pela vista de cada vez que ouço pessoas a negarem com veemência a obra dos Mão Morta. Para começar, não a conhecem. Quando muito uns acordes, no máximo uma música inteira, a pose pouco convencional do vocalista. Outros, os que conhecem a famosa história da navalha que Adolfo cravou na perna a meio de um concerto, retêm a imagem satânica para negarem provimento aos Mão Morta. Mas isso já foi há vinte e cinco anos, quando todos fizemos asneiras nos anos vertiginosos da juventude.
O som cru das guitarras encavalitadas, a voz gutural do Adolfo quando declama os poemas, os poemas muitas vezes sombrios, assustadores, num sobressalto quase constante – estes são os ingredientes de difícil digestão dos Mão Morta. Regresso à metáfora gastronómica. Nem todos conseguem lidar com certos ingredientes que se compõem num iguaria insólita. Muito poucos, aliás, o conseguem. Duas experiências pessoais de sentido contrário: sarrabulho doce e mostarda de Dijon.
Uma vez, num périplo por Trás-os-Montes, fui hóspede de uma velhinha muito simpática numa aldeia perdida no meio do nada. A senhora, muito hospitaleira, serviu ao jantar um cozido à portuguesa digno dos deuses (eram tempos em que tinha o animalesco hábito de comer carne). Para a sobremesa estava reservada a surpresa gastronómica, o verdadeiro soco bem no meio do estômago: um sarrabulho doce. A coisa era feita de sangue de porco – e eu que sempre abominara pratos em que este ingrediente fosse protagonista. Vinha misturado com nozes, pinhões e passas, passado por mel que lhe dava uma textura levemente adocicada. O imperativo do bom forasteiro (ou a covardia de não dizer não) tolheu a recusa da iguaria.
O que retrata fielmente a obra dos Mão Morta é a experiência da mostarda de Dijon. Aliás, uma experiência que se renova de cada vez que a especiaria acompanha um prato. É como se a primeira vez da mostarda de Dijon se repetisse a cada vez que ela acompanha o repasto. Há pouco usava a metáfora do soco no estômago, mas é metáfora que peca por defeito ao simular a sensação da mostarda de Dijon. É uma dor intensa, aguda, que sobe do nariz ao cérebro. A respiração sustem-se por uns segundos enquanto aquela intensa sensação não liberta o cérebro da súbita cefaleia. Acho que foi a primeira (e talvez a única) vez que consegui associar dor a prazer. Aprende-se a gostar da mostarda de Dijon. Os que, desagradados com as sensações fortes, desistem à primeira, alinhavam num instante a sentença da mostarda de Dijon. A ela não regressam. Vinga o preconceito por demissão da insistência. Tal como acontece com os ouvidos tísicos que reprovam, sem direito a segunda tentativa, a audição dos Mão Morta.
Eu digo, todavia: ainda bem. Há um certo culto que amplifica a excelência que não é compatível com a popularidade. Por acaso vende-se muita mostarda de Dijon por cá? 

9.7.10

O mexilhão é que tem sempre as costas largas


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Há uns meses, o automóvel oficial que transportava a eminência parda dos serviços secretos (ou lá o que aquilo é) causou um estrepitoso acidente no centro de Lisboa, em plena luz diurna. Passaram-se estes meses todos, o Dr. Mendes curou-se do maxilar partido, e a sindicância concluiu que o motorista é que teve culpa. O inquérito faz saber que o doidivanas do motorista seguia “em marcha de urgência, violou grosseiramente regras de circulação estradal, ignorando designadamente a obrigação de parar no sinal vermelho, pondo assim em perigo terceiros”. Aquele automóvel descia a Avenida da Liberdade a cento e trinta quilómetros por hora. Um detalhe...
Que levante o dedo o primeiro cidadão que nunca se assustou com a velocidade vertiginosa e o aparato circundante de veículos oficiais transportando alguma excelência muito importante. Entre os múltiplos afazeres e responsabilidades solenes, suas excelências andam numa azáfama que obriga os motoristas a fazerem de conta que são pilotos de ralis nas ruas e avenidas da cidade. As agendas de suas excelências têm horas pequenas para as inúmeras solicitações. Não, não nos podemos indignar pela não aplicação do código da estrada às viaturas oficiais que seguem muito apressadas por irem – e a expressão merece a caução da lei, da própria lei feita por quem dela se aproveita – em “marcha de urgência”.
Então parem de nos contar as balelas do Estado de direito, da igualdade de todos perante a lei e dos inerentes valores que uns certos cultores da bafienta república querem fazer crer serem seu (da república) exclusivo. É que a bota não bate com a perdigota. O banzé dos batedores que abrem caminho nos seus potentes motociclos, para depois aparecer o cortejo de “viaturas oficiais” a relinchar os pneus a meio de uma curva arriscada, é privilégio vedado ao cidadão comum. Quero lá saber que a comitiva vá em “marcha de urgência”; não põe em risco a segurança dos outros?
O mais repelente é a notável sindicância ter demorado oito meses para apurar as responsabilidades da brincadeira. Que, como é conveniente, caíram em cima dos ombros do motorista. Dir-se-ia, portanto, que o Dr. Mendes foi raptado pelo motorista e viajava vertiginosamente contra a sua vontade. Estamos a ver como se passou o episódio: o Dr. Mendes em gritinhos histéricos, a exigir que o motorista não carregasse tanto no acelerador, e este surdo aos apelos, tomado por um instinto kamikaze a sulcar em velocidade voraz ruas e avenidas que aparecessem pela frente. Até podemos imaginar outro cenário: o Dr. Mendes terá desfalecido, o seu coração fraco para aguentar tanta adrenalina no banco de trás do negro, blindado BMW. Desmaiado, ficou nas mãos do ensandecido motorista. Ninguém, no seu bom juízo, acredita que ao saltar para o banco traseiro do BMW o Dr. Mendes ordenou ao motorista para ir de pé na tábua.
No fim, quem fica escaldado? A parte fraca, o mexilhão que terá obedecido às ordens do mandante. O mandante, coitado, já teve estadia hospitalar por ter partido os queixos. Era o que mais faltava se ainda se apurasse a sua responsabilidade. Não sei se estou a pôr os óculos errados, mas isto soa-me à mais lamentável das covardias. Um manda fazer, o outro segue as ordens e, depois da coisa ter corrido mal, o mandante passa entre as gotas da chuva sem se molhar. Isto é o fato à medida do socialismo caseiro.
Eis o cúmulo das ironias: o Dr. Mendes ia atrasado para a tomada de posse dos governadores civis – essas vetustas inutilidades da arcaica república. Se alguém já tivesse tido o bom senso de liquidar estes abencerragens, o Dr. Mendes não tinha apanhado um susto de morte. E o motorista não era acusado de algo que não foi da sua lavra.
(Em Lisboa)